sexta-feira, 11 de abril de 2008

Cesário


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer
Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa de um café devasso,
Ao avistar-te, há pouco fraca e loura,
Nesta babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorrestes um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, sudável.
«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que não o suspeites!
-Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada...
Soberbo dia!
Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
«Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!»
De repente, parastes embaraçada
Ao pé de um numeroso ajuntamento,
E eu, que urdia estes frágeis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi, então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais,
com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!

6 comentários:

  1. «Amor, que o gesto humano na alma escreve

    Amor, que o gesto humano na alma escreve,
    Vivas faíscas me mostrou um dia,
    Donde um puro cristal se derretia
    Por entre vivas rosas e alva neve.

    A vista, que em si mesma não se atreve,
    Por se certificar do que ali via,
    Foi convertida em fonte, que fazia
    A dor ao sofrimento doce e leve.

    Jura Amor que brandura de vontade
    Causa o primeiro efeito; o pensamento
    Endoudece, se cuida que é verdade.

    Olhai como Amor gera, num momento
    De lágrimas de honesta piedade,
    Lágrimas de imortal contentamento.»

    Luís Vaz de Camões
    Aos nossos Amores!!
    Eu

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  2. Adorei as sombras, o bulício, o Tejo e a maresia.

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  3. Dele, por outras razões, este:

    De tarde

    "Naquele «pic-nic» de burguesas,
    Houve uma coisa simplesmente bela,
    E que, sem ter história nem grandezas,
    Em todo o caso dava uma aguarela.

    Foi quando tu, descendo do burrico,
    Foste colher, sem imposturas tolas,
    A um granzoal azul de grão-de-bico
    Um ramalhete rubro de papoulas.

    Pouco depois, em cima duns penhascos,
    Nós acampámos, inda o sol se via;
    E houve talhadas de melão, damascos,
    E pão de ló molhado em malvasia.

    Mas, todo púrpuro, a sair da renda
    Dos teus dois seios como duas rolas,
    Era o supremo encanto da merenda
    O ramalhete rubro das papoulas."

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  4. Esse do pic-nic de burguesas e do ramalhete rubro das papoulas, transportou-me (tal como o que publiquei) para as minhas aulas de Literatura Portuguesa que tive no 10º ano do Unificado no já longínquo ano escolar de 1978/197. Obrigado "r" pela contribuição.

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  5. Lá ficou o 1979 sem o "9"..o ano é longínquo mas 197 ? só se eu fosse uma personagem biblica e ainda aqui andasse a ensombrar as vossas existências.

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