quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Entre reis e rainhas...

Tinha de ser o primeiro português a ver o filme.
Eu sei que não o vi sozinho.
Mas fomos cerca de 50, na mesma sala, a vê-lo pela primeira vez, na primeira sessão da primeira tarde da sua estreia em Portugal.
Em Coimbra não estreou hoje.
Vindo a Lisboa, tive de me estrear.
Peguei em mim e refugiei-me numa anónima sala de cinema climatizada da capital e fechei as comportas da realidade.
Reentrei na vida e na sala de estar da família Crawley, como se fosse a minha.
E vi o filme como se estivesse a ver o primeiro episódio da sétima série da melhor produção que alguma vez a televisão viu - Downton Abbey.
O som ecoou na sala, aquele piano do tema de John Lunn que tão bem pontua a série.
E serviu-se uma digna refeição.
Notável foi como em duas horas Julian Fellowes, o argumentista da série, tocou em TODAS as personagens, dando-lhes algum colorido e protagonismo.
Violet, deliciosa e truculenta como só Maggie Smith o sabe ser.
Os de cima e os de baixo, numa elegante e verosímil estrutura narrativa que coloca Suas Majestades da velha Inglaterra no Castelo de Highclere, corre o ano de 1927.
Sei que a vida já não se vive assim.
Sei que muito daquilo é obsoleto e politicamente incorreto.
Mas passeei em beleza e graça pelos jardins de Cora, Mary e Edith, ainda a tempo de ver o mordomo Carson suspirar que os Crawleys hão-de viver muitos mais anos, entre brumas, revoluções e pratas encardidas.
A arte é assim. Sem tempo, sem credo, sem pecado.
E enquanto souber que ainda vou ver Dame Maggie por mais alguns anos entre nós, vivo mais feliz.
Mesmo.

Saí do cinema pelas 4.
Como se não tivessem passado duas horas.
E voltei a ouvir falar de vacas proibidas, de mulheres que morrem aos braços de seus bandidos, de golas inflamáveis como poucas....
Voltai, ó gentes de Downton Abbey, que estais perdoados!

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

há um mês sobre o Báltico...


sábado, 7 de setembro de 2019

Dor e Paixão - o regresso de Pedro

A ele tudo lhe doía.
O corpo cansado e envelhecido, depois de tanta atrocidade a si feita, parecia cambalear e ofuscar toda a criatividade intelectual do seu autor.
Salvador, de sua graça.
Como o Toto de Cinema Paraíso.
Um passado de descoberta e redenção pelo eterno Cinema que acabou por o salvar.
A sua única angústia foi não ter conseguido salvar Marilyn e Nathalie Wood, suas heroínas das fitas (quando as outras heroínas, mais psicadélicas e químicas, pareciam, afinal, o seu destino).
Cresceu descobrindo-se diferente (e a cena do seu primeiro desejo é sublime).
Cresceu sabendo que queria filmar as suas histórias e os retratos familiares que ia conhecendo (apesar da admoestação materna pelo facto de retratar vizinhas sem que elas o soubessem).
Sempre com dores.
Com muitas dores.
E, tarde, depois de conheceu outro vício tardio, consegue inspiração, afinal, para voltar a filmar.
Como se nunca o tivesse deixado de fazer.
Há ainda esperança para Salvador.
Antes de o anestesiar para a operação à garganta, o médico pergunta-lhe como se sente, e se está a trabalhar nalgum projecto, e ele responde: “Oh, doutor, sim, estou a escrever uma coisa.”
Afinal, Salvador Mallo, tal como Pedro Almodóvar, ainda tem tantas histórias para dizer.
*
DOR e GLÓRIA é Almodóvar da pura estirpe do «Fala com Ela» e do «Tudo sobre minha mãe», dois dos filmes mais geniais que vi na vida.
Aqui se redescobre o mundo e os mundos de Almodóvar.
O Salvador é o seu alter-ego (vejam como as letras de Salvador Mallo se convertem, à laia de anagrama, em ALMODOVAR).
Há um Federico. Sem oito e meio motivos para se fazer à estrada.
Há uma criança que se descobre homossexual num meio rural e católico, dois homens maduros que se beijam ternamente...
"Sou dono das minhas histórias e imponho o meu universo com todo o orgulho e toda a prepotência que isso outorga", disse Almodóvar ao site espanhol eldiario.es.
"E no meu universo há dois senhores mais velhos que se beijam com paixão e, logo depois, um deles volta para a sua vida com a sua mulher e seus filhos", acrescentou.
Aos 69 anos, Almodóvar volta a filmar os olhares de uma das suas actrizes fetiche, Penélope Cruz, a quem confia um papel proeminente, a de jovem mãe que se depara com os problemas, mas que se ilumina ao cantar na lavandaria.
E António.
Como nunca o vi.
Banderas, um actor elevado à glória, mas que sofreu a dor pessoal, com várias operações de coração nos últimos anos - ele consegue expressar a vulnerabilidade de um criador mergulhado no seu apartamento-museu para quem a sua vida "perde o sentido" sem filmar.
As cadências, os detalhes, os pormenores, as cores, sempre as cores...
*
Espalhem a notícia.
ALMODÓVAR voltou.
Com muita dor e sem anestesia.

Brilhante.