sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

BALANÇO DE UM ANO DE MURMÚRIOS



O relógio do novo tempo aproxima as nossas solidões e os nossos burburinhos.
Está quase chegado o minuto derradeiro de um ano de mágoa, muita mágoa, de júbilo profissional, de fim de labor num limoeiro amado, de dor, de pouca cor.
Vi as sombras do vírus e pouco mais.
Testei muito sempre em busca de uma nota negativa.
Vacinei-me como nunca.
Porque acredito naquilo que é credível e não sou um filho das trevas.
Falei muito de crianças.
Por não as ter.
Por só as ter.
Vi os sobrinhos amados a crescer em graça e sabedoria.
Voltei aos adultos marotos e ao crime de 1ª página ou da última, aquela que ninguém lê.
Rejubilei com o regresso dos ABBA e deleitei-me, sempre, com os meus livros e os meus filmes (aqueles que nunca me desiludem).
Deixei o meu comboio de anos e lancei âncoras no meu Palácio de Justiça preferido.
Ouvi falar de Aleppos fantasmas e de sírios pesadelos
E desacreditei na raça humana.
Lancei foguetes pela queda do um monstro nas Américas
e continuo a aguardar o tombo de um seu primo na Amazónia.
O som do silêncio pairou sobre as cidadelas.
Nunca vi tanto desalento nas vidas das gentes.
Vi gente amada presa a um branco leito, espantando a morte, sem o conseguir,
decifrando olhares, reaprendendo a olhar.
As cegonhas partiram para parte incerta.
Nunca cá estiveram, de facto.
Serei eu que as espanto?
As marés não chegaram a salgar-me,
o mar adentro que me colou às cinzas das algas
tocou-me ao de leve e nunca me molhou.
Senti suores, mal-olhados, frémitos, invejas mal contidas, ocultos passos dentro de mim.
E senti o meu Deus como nunca em mim.
Pairei no fundo da alma,
encostei os olhos à lama dos tempos,
e chorei, chorei, chorei muito.
Por Ela.
Por mim.
Hoje quero-me assim filho da desgraça -
o novo relógio parece-me igual, em forma e conteúdo,
o novo tempo tem já saudades do velho tempo,
aquele em que o balanço dos dias e das noites
não tem receio das tornas que tiver de dar aos herdeiros da alegria.
Amanhã é um novo dia. E um novo ano.
A noite fez-se para amar,
O tempo... faz-se para passar!
Ao lado da Constança para sempre (um outro nome para a constância)...
Com desejos de novos desafios, de muita saúde para os que amo e os que muito estimo...
Depois do pior ano da minha vida, só pode vir o melhor.
Bom ano (maior do que a soma dos seus dias).
Eu... vou com as aves… falar com a minha Mãe.
Porque ela não me morreu.

 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Mimo

Corro.
Como se as pedras me pesassem.
O sol magoa-me.
O 22º ano apoquenta-me.
Como se fosse acre e duro.
Mimo-me.
Com a saudade.

 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

ODE MATERNAL

 ODE MATERNAL

O meu mundo nunca mais vai ser o mesmo a partir de agora.
Tenho a felicidade suprema de ter sido criado por dois progenitores exemplares que marcaram, de forma indelével, a minha existência e do meu Amado irmão Henrique.
A cruz recente da minha querida Mãe marcar-me-á para todo o sempre - a sua abnegação, a sua entrega à oração, o seu exemplo de serenidade mesmo quando a doença traiçoeira atacou sem aviso e sem piedade.
Em finais de Agosto, roubaram-me a esperança de a ver como uma sobrevivente do infame caranguejo.
Depois de sucessivos e exaustivos internamentos em Leiria e no «seu» IPO (que desde 2015 nunca a largou), chegou a hora de lhe dizer «adeus», num «até sempre e até breve», próprio que quem Crê.
Amou os filhos como ninguém.
Sustentou a doença do companheiro como poucas.
Sempre apoiou os meus voos, ela para quem todos os meus desenhos eram Picassos e as minhas redacções Hemingways.
Amparou-me em todas as minhas quedas, secou todas as minhas lágrimas, sussurrou-me sempre ao ouvido que eu devia fazer a diferença neste mundo. Eu e o meu irmão.
De pouco ou nada lhe vali nos últimos tempos de breu - tudo deve à acção misericordiosa de meu irmão Henrique que foi um Deus, quase que deitado a seu lado.
O meu mundo mudou.
Tenho faróis acesos mas apenas virtuais e não palpáveis.
O meu coração ainda está em carne viva.
A minha saudade também.
Fica aqui este estandarte de agradecimento profundo a todos e todas as que chegaram ao meu lado, me abraçaram e me tocaram na minha Dor.
Por escrito, pelo FB, por SMS, por telegrama, por postal, por aperto de mão, pela presença física nas exéquias em Leiria ou em minha casa, por tanto incenso e muita mirra.
Sei que ela é uma gaivota.
Sempre o foi.
Mas agora voa por aí, escutando os meus silêncios e murmúrios, soletrando as minhas alegrias e tristezas, caiando de sol a falta que ela tanto me faz e fará.
Sei que sou um HOMEM diferente pelo facto de a ter tido por MÃE. Por me ter moldado, ela e meu Pai Joaquim, como ser que anseia por LUZ e muita PAZ.
(…)
Porque, há, de facto, qualquer coisa de Deus na forma como me amaste, Mamã.
Eternamente GRATO.
Tentem passar um Bom Natal.
O meu vai ser o possível.
Em silêncio.
Por Ela.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O poder do cão - pó, cinzas e ternuras

 

Cru.
Exangue.
Ensanguentado e poeirento como a vida.
Aquela de que se foge mas que nunca foge de nós.
Misturando géneros e estereotipos como o do velho cowboy «macho» ou o da saga de Abel e Caim.
Phil olha para as montanhas como se visse silhuetas de cães raivosos.
Mais ninguém os vê.
Talvez só Bronco Henry.
Que ficou para trás da sua memória e do seu corpo de varão.
Rose desafia a tempestade e casa-se com o infortúnio ao lado de um homem dócil.
E um menino rapaz a caminho da adultícia confessa o indecifrável na primeira fase que abre o filme:
«Quando meu pai faleceu, eu só queria a felicidade da minha mãe. Que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe?»
Afinal, o ataque dos cães é inevitável.
Como se a ternura que o cowboy sádico sentia pelo seu amor de ontem fosse o rastilho para a fúria dos inocentes.
(...)
Cru.
Como se fosse veludo ao nosso olhar.
A mesma realizadora de O PIANO, Jane Campion constrói uma obra gigante - cheia de lezírias e trigo loiro - que vai levar o 1º Oscar para as mãos enormes e acres de Benedict Cumberbatch (entre ele e Andrew Garfiled, mon coeur balance!).
Como se fosse em Montana.
Mas afinal é na Nova Zelândia, o país mais ao contrário do nosso. Tanto, mas tanto a lembrar um Paul Thomas Anderson, o mais dos magnólicos poetas da imagem.
Mora este filme na Netflix.
E iluminou hoje a minha noite.
Cheia de sombras e de poeira.
De suor pagão e presságios bíblicos.
Não choveram sapos.
Mas ladraram cães.
Aqueles que só Phil vê.