quinta-feira, 27 de março de 2008

Os disfarces de Arlequim


Neste Dia Mundial do Teatro, quero deixar-vos um pouco de Brecht.
O poema que se segue é de um homem que fez teatro e pelo teatro se entregou à busca de compreender os fenómenos sociais que cantou como ninguém.
O poema é dedicado aos que viriam ao mundo depois da sua partida.
Eis o poema, chamado "Aos pósteros":

I
Realmente vivo em tempos sombrios.
A palavra ingênua é tola. Uma fronte lisa
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Ainda não recebeu
A terrível notícia.

Uma conversa sobre árvores é quase um crime
Por que inclui um silêncio sobre tantos delitos?
Aquele que vai pela rua tranquilo
Não é mais acessível aos amigos
Que estão em necessidade?

É verdade: ainda ganho o meu sustento
Mas acreditem: é por acaso. Nada
do que faço autoriza que eu me sacie.
Casualmente fui poupado (quando minha sorte acabar
Estou perdido)
Dizem-me coma! beba! fique feliz por ter o quê!

Mas como posso comer e beber se
Tiro ao faminto o que comer e
Meu copo d'água falta a quem tem sede?
No entanto, como e bebo.

Gostaria também de ser sábio.
O que é sábio está nos velhos livros:
Afastar-me da briga do mundo e passar
Sem medo a curta temporada
Sobreviver sem violência
Pagar o mal com o bem

Não realizar os desejos, mas esquecê-los
É tido por sábio.
Nada disso eu posso:
Realmente, vivo em tempos sombrios!

II
Cheguei às cidades no tempo da desordem
Quando aí reinava a fome
Cheguei-me aos homens no tempo do tumulto
E indignei-me com eles.

Assim passou o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

Comi minha comida entre as batalhas
Deitei-me para dormir entre os assassinos
Tratei do amor sem atenção
E vi a natureza sem paciência.

Assim passou o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

No meu tempo os caminhos levavam ao pântano.
Minha linguagem denunciava-me ao carrasco.
Só pude pouca coisa. Mas esperava que sem mim
Os dominadores se sentassem mais seguros.

Assim passou o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

As forças eram escassas. O alvo
Ficava a grande distância.
Era bem visível, embora
Eu mal pudesse alcança-lo.

Assim passou o tempo
Que me foi dado sobre a terra.

III
Vocês, que emergirão da maré
Onde nós soçobramos
Pensem
Ao falarem das nossas fraquezas
Nos tempos sombrios
De que escaparam.
Pois nós, desesperados, trocando mais de países
Que de sapatos, atravessamos as guerras de classes quando
Só havia injustiça e nenhuma revolta.
No entanto sabemos:
Também o ódio contra a baixeza
Contorce os traços.
Também a cólera contra a injustiça
Deixa a voz rouca.

Ah, nós
Que quisemos preparar o chão para a amabilidade
Nós próprios não pudemos ser amáveis
mas vocês, quando tiver chegado a hora
Do homem ajudar o homem,
Pensem em nós
Com indulgência.

Em tempo:
1º- Ao meu "irmão" P.D., no dia do seu aniversário.
Por vezes, até me esqueço que não não és do meu sangue!
2º- Tenho os olhos doentes e vou descansá-los por alguns dias. Reguem a magnólia por mim, ok?

6 comentários:

Anónimo disse...

Em nome do Círculo do Giz Caucasiano, obrigado estou por nos ter lembrado BB.
Para vóds, as minhas três pancadinhas de Molière.
Um arlequim.

Guilherme Salem disse...

Descansa e recompõe os olhos.
Gostei do poema do BB e de tudo.

Anónimo disse...

Robert Lepage, actor, encenador e dramaturgo canadiano é o autor da Mensagem para o Dia Mundial do Teatro 2008 que aqui vos deixo:

«Existem várias hipóteses sobre as origens do teatro, mas aquela que me interpela mais tem a forma de uma fábula:

Uma noite, na alvorada dos tempos, um grupo de homens juntou-se numa pedreira para se aquecer em volta de uma fogueira e para contar histórias. De repente, um deles teve a ideia de se levantar e usar a sua sombra para ilustrar o seu conto.

Usando a luz das chamas ele fez aparecer nas paredes da pedreira, personagens maiores que o natural.Deslumbrados, os outros reconheceram por sua vez o forte e o débil, o opressor e o oprimido, o deus e o mortal.Actualmente, a luz dos projectores substituiu a original fogueira ao ar livre, e a maquinaria de cena, as paredes da pedreira.

E com todo o respeito por certos puristas, esta fábula lembra-nos que a tecnologia está presente desde os primórdios do teatro e que não deve ser entendida como uma ameaça, mas sim como um elemento unificador.
A sobrevivência da arte teatral depende da sua capacidade de se reinventar abraçando novos instrumentos e novas linguagens. Senão, como poderá o teatro continuar a ser testemunha das grandes questões da sua época e promover a compreensão entre povos sem ter, em si mesmo, um espírito de abertura? Como poderá ele orgulhar-se de nos oferecer soluções para os problemas da intolerância, da exclusão e do racismo se, na sua própria prática, resistiu a toda a fusão e integração?

Para representar o mundo em toda a sua complexidade, o artista deve propor novas formas e ideias, e confiar na inteligência do espectador, que é capaz de distinguir a silhueta da humanidade neste perpétuo jogo de luz e sombra.
É verdade que a brincar demasiado com o fogo, o homem corre o risco de se queimar, mas ganha igualmente a possibilidade de deslumbrar e iluminar».

Eu

César Paulo Salema disse...

Li ao César e ele agradece, emocionado, esta fábula das teatrices.
C.

Passiflora Maré disse...

Ó Tu que se intitula "Eu", gosto de te ler. Aparece sempre porque és uma verdadeira mais valia. Na convicção de que tirando algumns jogos de espelhos este "EU" é sempre o mesmo.

Anónimo disse...

Bertolt Brecht venho aqui dizer-te que nós os "Posteros", não meremos o trabalho que tiveste, o poema que nos deixaste.
Desde que partiste, a humanidade vive atravancada de produtos de consumo e em pouco mais pensa senão neles.
Os homens como tu que sabem que "o ódio contra a baixeza contorce os traços e a cólera contra a injustiça, deixa a voz rouca", são diamantes raríssimos que o grosso da humanidade não compreende.
A Humanidade não pode já julgar-te com indulgência, porque ela deixou de julgar.
Só alguns raros homens julgam.