terça-feira, 29 de outubro de 2019

On a rainy day

Um dia de chuva em Coimbra não é muito diferente de um dia de chuva em Nova Iorque.
Dia de rever pérolas de Woody Allen que continua a escrever como ninguém mas que se perde em enfado nesta nova comédia romântica, algo redundante na sua obra (depois de um genial RODA GIGANTE).
O tempo voa, mas em Económica.
ou
Quem não tem muita imaginação, basta-se com a vida real...
É complicado para mim ouvir estes bravíssmos diálogos, que passam de Cole Porter a Fellini, da boca de gente tão nova, sem blues e tão millenium...
Chalamet não é Woody.
Elle não é Mia ou Dianne Wiest.
Contudo, consegue filmar, em ano muito complicado para si, com um humor mais inteligente que delirante, apoiado em diálogos corrosivos, apresentando uma comédia redonda mas labiríntica, ao som nostálgico do piano e da sombra do jazz, no romantismo de uma Manhattan clássica, cinzenta e chuvosa.
Ganha-se uma eterna vontade de ali voltar, a Manhattan, e de esperar pela (sua) próxima fita.
Chove.
Apesar de tudo.
E só por isso é perdoado!

domingo, 13 de outubro de 2019

Deixem entrar os palhaços

JOKER – um conto da loucura normal
Façam o favor de parecer normais, ok?
O grande drama em que vive a maioria dos doentes mentais deste mundo reside no facto de o resto da dita sociedade mais normalizada partir do princípio de que eles não se devem portar como tal.
Se a sua vida deveria ser uma tragédia, não é de bem parecer que ela seja antes uma comédia.
Rir no momento certo.
Chorar só «by the book».
Mutilar sentimentos.
Cavalgar utopias.
Semear conformidades.
Hoje à noite fui ver um homem diferente.
Insano na sua sanidade, são na sua loucura normal.
Envolto num mundo maniqueísta só capaz de erguer muros entre as pretensas normalidades de quem nasce, respira e vive como se fosse, de facto, normal.
E se os loucos da cidade se unissem?
E se os desamparados, humilhados, sofridos, saltimbancos, os anónimos peões do mundo se unissem contra o Sistema?
E se a violência começasse apenas porque os outros a começaram primeiro?
Ele ri-se desmesuradamente, como se nunca tivesse piada o som que lhe chega aos ouvidos.
Pinta a face de gáudio como um palhaço pobre, palhaço rico, eterno retorno da Vida e da Morte.
O descompensado palhaço super-vilão, "JOKER", foi criado, em 1940, pelo cartoonista Jerry Robinson.
Com o decorrer do tempo foi-se tornando um peso pesado, mesmo junto do público não ligado à BD, e apesar de (alegadamente) não passar de um mero personagem secundário da saga Batman, graças ao facto das suas adaptações cinematográficas terem sido protagonizadas por actores de excepção como o Jack Nicholson e Heath Ledger (o Jared Leto também não se saiu nada mal).
Jamais alguém imaginou que a transcendência da performance de Heath Ledger, em "Cavaleiro das Trevas" (que, inclusive, lhe valeu um Óscar póstumo, já que faleceu antes da estreia do filme), viesse a ser ultrapassada.
No entanto, o impensável aconteceu na nova película do Todd Philips, "Joker" (desta vez o arqui-inimigo do herói dark de Gotham City tem direito a enfoque exclusivo sobre si), com um Joaquin Phoenix de impossível adjectivação.
De facto, nenhuma caracterização/definição lhe fará o mínimo de justiça, pelo que abster-me-ei de sequer ousar comentar a reencarnação do solitário palhaço triste, portador de doença psiquiátrica, que se transformou num excêntrico psicopata hiperviolento, consequência do abandono/discriminação da sociedade (igualmente, "doente").
No cartear, o joker pode valer a carta que quisermos.
Pode valer tudo.
Este Joker vale por tudo.
Nas jogadas de Hollywood vai valer, por certo, o óscar ao enormíssimo Joaquin Phoenix.
Já candidato a FILME DO ANO (notável a ligação que senti a MAGNÓLIA, o filme da minha vida - no fim, no hospital psiquiátrico, a mulher que o interroga é a mesma actriz que entrevista Tom Cruise nessa alegoria de Paul Thomas Anderson de 1999).
*
No genérico final, mal me consegui levantar da cadeira.
Durou muito dentro de mim este «palhaço».
Como alguém já disse, uma fílmica piada de mau gosto, reflexo da sociedade egoísta habituada a erguer grades que separam os ‘sortudos’ dos ‘azarados’ e a debochar do sofrimento alheio, e ainda uma piada mortal, pois infelizmente os risos frenéticos ecoaram na cabeça de quem perdeu contacto com a realidade após tanto os escutar.
Como alguém nos soprou ao ouvido, se estiveres sempre empenhado em ser normal nunca saberás o quão fantástico poderás tu ser…
Porque, afinal, há sempre um JOKER à nossa volta:
*
Palhaço rico,
entre mágicos de lamé e malabaristas dos sete costados
coelhos gigantes e alados elefantes
plumas, tambores e serpentinas,
é o sinal certo de nada ter
e de tudo abarcar na hilariante traquinice
que lhe cabe na dourada alma
e que lhe toca no âmago do seu ser
*
Palhaço pobre
entre suados trapezistas e rotas bailarinas
leões marinhos e cães-maravilha
super-homens e super-dores
boleros, Ravel e flamengos,
é a certeza incerta de tudo ter
e nada poder fazer para calar
o sorriso do triste
e a lágrima do folião
*
Senhoras e senhores, o espectáculo vai COMEÇAR.
Façam o favor de NÃO ser normais, ok?
E, sobretudo, nunca deixem de fazer entrar os palhaços…
Mas onde estão os palhaços?
Rápido, façam entrar os palhaços.
Não te incomodes, eles já estão aqui.
https://www.youtube.com/watch?v=yvZex3Qf7QQ