sábado, 29 de março de 2008

Para o César e a Flor dos seus segredos

I

Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, choupos meus,
carregados de sombra e rasos de água.

Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.

- Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.

II

Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;

mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.

III

Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;

tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.

IV

Somos como árvores
só quando o desejo é morto.

Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.

Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.

VI

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse
seria o mesmo bicho sadio
embriagado de alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado P.M.
Assina: a flor do segredo dele