Recebi hoje um telefonema de uma Amiga de longa data, daquelas que não se vêem todos os dias mas que permanecem, para sempre, no baú das nossas melhores recordações, guardadas na gaveta mais secreta e íntima do nosso ser.
Tinha ela assistido a uma partida recente de um ente querido, após um calvário de sofrimento.
Dois dias antes, uma outra (senhora de braços inquietos e de discernimento inigualável) o tinha também feito, desta feita por ataque fulminante.
Parei um pouco e pensei que, realmente, estamos numa idade em que as nossas raízes começam a secar, em que os nossos alicerces começam a ruir e em que nos sentimos mais sozinhos do que nunca.
Nada substitui uma raíz sólida, nem sequer um fruto suculento e sumarento.
Nessas horas sentimo-nos naquele estrado de madeira, rodeados por água e fustigados por uma chuva (aparentemente) constante que tudo molha, que tudo amarrota...Não podemos dar um passo à frente pois a queda parece-nos certa e fatal.
Olhar para o lado é angustiante pois só vemos água e nunca terra firme.
Recuar é impossível pois não podemos voltar a jogar aquele jogo de xadrez - as peças não nos pertencem, os instantes não são nossos, as horas são de Alguém que tudo vela, que tudo sara também.
Que fazer?
Dizem que o tempo tudo cura, que os relógios continuam sempre a trabalhar, por mais cansados que se sintam.
É este o nosso destino, é esta a nossa sina de resilientes.
Deixo aqui um pedaço do livro que actualmente estou a ler e que consegue, em palavras brandas e sábias, dizer tanto daquilo que eu queria deixar expresso a estas minhas duas cúmplices de vida.
Falo de "Património" do Philip Roth (Dom Quixote), um dos maiores romancistas vivos.
A brisa do vento diz isto:
"Penso que enquanto visitamos uma sepultura temos pensamentos que são mais ou menos os pensamentos de toda a gente e, pondo de parte a questão da eloquência, não diferem muito de Hamlet a contemplar o crânio de Yorick. Parece-me pouco haver para pensar ou dizer que não seja uma variante de "ele carregou-me mil vezes às suas costas". Estar num cemitério faz-nos geralmente recordar como é tacanho e banal o nosso pensamento a este respeito. Podemos tentar falar com os mortos e sentimos que isso ajudará; podemos começar por dizer, como eu fiz naquela manhã, "Bom, Mãe...", mas é difícil não sabermos que é como se estivéssemos a conversar com a coluna vertebral suspensa no consultório do osteopata. Podemos fazer-lhes promessas, actualizar-lhes as notícias, pedir a sua compreensão, o seu perdão, o seu amor - ou podemos optar pela outra abordagem, a abordagem activa, arrancar as ervas, alisar o cascalho, passar os dedos pelas letras gravadas na lápide; podemos até baixar-nos e colocar as mãos mesmo acima dos seus despojos - tocando no chão deles, podemos fechar os olhos e recordar como eram quando ainda estavam connosco. Mas estas reminiscências, este recolhimento não mudam nada, a não ser o facto de os mortos parecerem ainda mais distantes e fora do nosso alcance do que quando conduzíamos o automóvel dez minutos antes. Se não está ninguém no cemitério para nos observar, somos capazes de fazer coisas muito loucas para que os mortos pareçam outra coisa em vez de mortos. Mas mesmo que que consigamos e nos emocionemos o suficiente para sentirmos a sua presença, não deixamos de nos vir embora sem eles. O que os cemitérios provam, pelo menos a pessoas como eu, não é que os mortos estão presentes, mas sim que partiram. Eles partiram e, por enquanto, nós não. Isto é fundamental e, por muito inaceitável que possa ser, facilmente compreensível".
D. e L., alisem o cascalho, coloquem as flores mas sequem as lágrimas, por favor.
E escutem-no, ao vosso pai, esse eterno consertador de brinquedos.
Ele partiu. Vocês não.
Fechem o guarda-chuva, abram os olhos, usem uma barca e recomecem a travessia de todo aquele mar. Mesmo à chuva. Com ele, sempre ao leme, mesmo que não o vejam!
7 comentários:
Que bonito...
Bem haja por escrever assim...
César...não soube de nada...mais uma vez, sei por ti tudo...bem hajas por dizê-lo dessa maneira...
A propósito a D. escreveu.
Pai.
Foste ontem de viagem.
Ficamos vazios porque a nossa alma deseja a tua presença.
Ficamos serenos porque estavas a sofrer e foste em paz.
Porque somos um povo viajante gostamos de notícias frescas.
Trago-te notícias simples.
Os nossos filhos estão de saúde e os beijos da filha da Paula ainda se dirigem para ti.
Os dias anunciam a Primavera.
Breve, breve “as velhas” vão começar a construir os seus ninhos e os cucos atrevidos vão-lhes deixar mais um ovo para criar.
As flores já animam os jardins e o sol está quente debaixo da varanda.
Guardaremos a mãe como uma noiva.
Nós continuaremos com o sabor dos dias e quando se fizer tarde e frio iremos ter contigo.
Temos medo de empreender essa viagem porque tal como tu desconhecemos o caminho.
Eu sei que te vais pôr à espreita para quando se fizer tarde nos alumiares.
Por agora ficaremos por aqui a tentar preencher-te.
Com o maior respeito pelo que sofreste.
Bendita D.
Não sei quem és.
Mas o teu pai foi feliz por te ter a ti.
De um anónimo.
Obrigado D. por teres cá vindo cheirar a magnólia.
Os meus respeitos por ti.
Sempre.
Para ti, serei P.
Em tempo: apesar da hora quase simultânea, o anónimo das 2.02 não era eu.
P.
Minha querida D. sei tão bem quem és e só espero que possas ler isto já que, nesta altura, não tenho como contactar-te. Quisera estar mais próximo nesta altura quisera saber mais cdeo de tudo. Fica a certeza que estou contigo, e tu adivinhas quem sou, e um grande beijo para ti. Não vale a pena dizer mais nada.
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