sábado, 3 de maio de 2008

Um Verdadeiro Ser Humano.


«- Entre, Jan - disse a senhora de Falla abrindo a porta do quarto e afastando-se para o deixar passar.
Logo ao primeiro olhar, Jan viu que tudo no quarto estava arrumado e decente. A cafeteira fora posta a amornar à beira do fogão; a mesa, perto da janela, estava coberta com uma toalha resplandecente de brancura, sobre a qual tinham sido dispostas as chávenas de café da senhora de Falla. Kattrinna estava deitada na cama, e as duas mulheres que tinham vindo assisti-la coseram-se com a parede para que Jan pudesse ter uma visão de conjunto e apreciar bem os arranjos. De pé, diante da mesa posta, a parteira aconchegava nos braços um pequeno embrulho.
Mau grado seu, Jan Andersson teve a impressão de que dessa vez era ele o herói do dia. Kattrinna recebeu-o com um olhar meigo, como a perguntar-lhe se estava contente com ela. E os olhos das outras mulheres, voltadas para Jan, pareciam esperar elogios de todo o trabalho feito.
Mas a alegria não vem assim tão depressa, quando se esteve amuado e gelado durante um dia inteiro. Jan Andersson não pôde logo apagar do rosto a expressão de Erik de Falla e ficou imóvel, sem dizer palavra. Então a parteira deu um passo em frente - e o quarto era tão pequeno que esse passo bastou para a aproximar de Jan a ponto de poder passar-lhe de repente o recém-nascido para os braços.
- Ande, olhe lá para a sua menina! Não é mesmo o que se chama uma perfeição?
E pronto, ali estava ele segurando nas mãos uma coisinha quente, macia, enrolada num grande xaile.
O xaile tinha descaído um pouco: Jan Andersson viu uma carinha franzida, duas mãos pequeninas e enrugadas. Sempre gostava de saber o que é que as mulheres esperavam que ele fizesse ao embrulho que a parteira lhe pespegara nos braços. Mas de repente sentiu um choque tão violento que ambos, ele e a criança, estremeceram de alto a baixo. O choque não vinha de fora; e no entanto Jan Andersson não percebia se partia do bebé e vinha atingi-lo, ou se, pelo contrário, fora ele que primeiro sentira o abalo e o transmitira à filhinha.
Logo o seu coração desatou a bater com força - nunca assim batera até então...- e no mesmo instante Jan deixou de sentir frio, os desgostos e amarguras dissiparam-se, já não se sentia revoltado, tudo estava certo. A única coisa que agora o atormentava era aquele coração que batia grandes pancadas surdas contra o seu peito - como se Jan tivesse andado a dançar ou a subir uma encosta a pique.
Resolveu dirigir-se à parteira:
- Ó minha boa senhora, ora ponha aqui a mão! Parece que tenho o coração a bater de uma maneira esquisita...
- Está com palpitações - disse a parteira. - Isso costumava-lhe acontecer muitas vezes?
- Não, nunca tive nada que se parecesse - afirmou Jan. - Desta maneira nunca.
- Mas não se sente bem? Dói-lhe alguma coisa?
Não, Jan Andersson não tinha dor nenhuma.
A parteira já não sabia que pensar. O que teria o homem?
- Pelo sim pelo não é melhor eu pegar na menina.
Mas então o pai sentiu que não queria separar-se da filha e respondeu:
- Não deixe-a estar aqui.
Nesse momento as mulheres viram-lhe com certeza nos olhos um brilho especial, notaram-lhe na voz uma inflexão que as divertiu, porque a parteira reprimiu um sorriso e as outras desataram a rir.
- Então o senhor nunca tinha gostado de ninguém a ponto de sentir bater o coração?... - Perguntou a parteira.
- Não - respondeu Jan.
E no mesmo instante ficou a saber o que lhe fizera palpitar o coração. E mais ainda: começou a compreender o que até ali lhe faltara na vida.
Pois quem não sente bater o coração, nem de tristeza nem de alegria, não pode ser considerado um verdadeiro ser humano.»
Um livro de um extremo empenhamento ético e humano. Talvez a maior história de amor de um pai pela sua filha única, que alguma vez foi escrita. Neste livro só há doçura na imaginação. Tudo o resto é vida nua e crua.

5 comentários:

armando s. sousa disse...

O trecho é excelente. Fiquei com curiosidade de ler o livro. Certamente vou comprar muito brevemente.

Uma beijola

Passiflora Maré disse...

Obrigada Armando, o livro é tão intenso que é difícil escolher um trecho para ilustrar.

Anónimo disse...

Registei, claro.
Bj.
C.(EN)

Guilherme Salem disse...

Sem dúvida dificil. Conhecendo a obra sabemos o que dizem.
Maré: Obrigado por estes posts tão belos e, aproveito, Armando: parabéns pela Fábrica...que gosto de visitar.
Beijos e Abraços. Gui

Anónimo disse...

Obrigada! por partilhares conosco trechos tão belos.
Beijos
Ti.....A