terça-feira, 8 de julho de 2008

Danças



Ela calçou a meia dos voos,
apertou o coração bem de mansinho,
e deu uma pirueta, a melhor que alguma vez tinha dado.
Sozinha, entregue aos seus pliés,
encantada pela sonata de Borodine,
vestiu-se de éter e de neblina,
salpicou o corpo de suor e perseverança
e voltou a dar uma pirueta, desta vez, meia mortal, com fick flack à rectaguarda.

No outro canto da cidadela,
ele escondeu-se da vergonha que deixara há muito de sentir,
por se sentir diferente dos outros,
vestido com as meias do voo,
apertado com o coração entre as pernas.
Mais acompanhado do que nunca,
sonolento como uma qualquer valsa de Strauss,
despiu a seda pura que não comprou,
enfeitou-se do desencanto que não provou,
deu uma última pirueta que não ensaiou.

De súbito, um tiro soou.
Os canhões de Borodine chegavam ao fim
e ela descansou, apagando o gira-discos.
As plumas de Strauss desfizeram-se
... e ele tombou... para sempre.

Ainda hoje, se ouvem, ao longe, na cidadela,
as piruetas que ele nunca chegou a acabar,
os pliés que ela nunca chegou a mostrar-lhe.

1 comentário:

Anónimo disse...

Dança que dança,
sofre que sofre.
Chegou cá o canto sofrido deste bailarino homem...
Obrigado, César.