Minha, muito amada, Maria Antónia.
Foi confirmada ontem a minha pena. Como podes deduzir, vou permanecer aqui, ou noutra prisão qualquer, vinte anos. Sabes que a pena é justa e que a defesa não conseguiu iludir a vigilância dos juízes.
Sabes também como te amo e como, com a avidez do dinheiro deitei tudo a perder.
O pesadelo de ser rico a qualquer preço, de ter carros topo de gama, vestir sempre roupa de marca e fazer viagens de luxo a países longínquos, já morreu.
Agora sonho uma vida com a liberdade da Terra. Poder decidir todos os dias o que fazer com as vinte e quatro horas do dia. Saber a que horas nasce o sol. Ir contigo a pé à Senhora da Saúde. Fazer amor contigo debaixo das faias do jardim, da casa velha, sem horas nem prévio conhecimento institucional.
Não temos filhos. Tu tens vinte e sete anos, feitos em Julho. Estamos casados há menos de três anos.
Tenho pensado nisso!
Queria pedir-te para viveres, por mim, a vida de jovem que eu nunca vou viver.
Quando eu sair daqui vou ter perto de cinquenta anos.
Quero que namores de novo o Gil, o Engenheiro, que não te esquece!
Ele quer e pode dar-te uma vida boa.
Não quero que me visites na prisão. Não quero que me vejas morto, que é um pouco como me sinto.
E também não quero que me chores. As tuas lágrimas são um fardo que eu não posso suportar!
A minha culpa já é muito grande, sem elas.
Maria Antónia, manda-me a roupa e os livros, desmancha a casa, entrega a chave, desfaz-te de tudo o que foi nosso e não voltes à Rua da Trindade.
Cultiva as roseiras bravas do jardim do teu pai, colhe as tuas violetas e ajuda o teu pai a podar as árvores.
Toma conta do esquilo, e do "Tejo". Não te esqueças do osso dele todos os dias.
O teu trabalho é árduo e vai manter-te ocupada.
A fonte do anjo, no jardim da casa velha, é muito bonita. Pensa em namorar aí o Engenheiro, no Setembro que se aproxima!
Se ele te pedir, faz com ele a viagem que ele quer, aos fiordes na Noruega.
No Outono, que não tarda, dança com as folhas, nas manhãs de vento quente.
E Deita-te na eira ao sol, como era costume.
Vai com o vento e entrega-te aos odores da monção...
Estabelecimento Prisional de Maniqueia.
Seis de Agosto de 2008.
Zeca.
12 comentários:
Adoraria ter recebido, em algum momento da minha vida, uma carta assim, com tanto amor dentro...
Início de etiqueta promissor...
Bj.
C (EN)
Esta carta lembra o óbvio que muita vezes esquecemos, que a vida tem o outro lado, e que é bom lembrá-lo todos os dias. E tem caminhos que levam aos vários lados (a todos). E tem dialéctica. Tem ambição. E tem paixão. E tem desalento. E tem coragem para viver. E tem momentos bonitos. De Humanidade.De amor aos outros. E que por isto vale a pena viver.
Em tempos difícieis, faz bem parar para pensar.
PS. "Ele" há-de sair antes do cinquenta. E merece-o!
Um abraço ao Zeca
Está bem...
Que bem escreve o Zeca....tivesse ele dedicado a vida a isto e, talvez, não cumprisse vinte (20 ?) anos, sabe-se lá porquê. Isto se a carta for real e não uma emanação de alguma alma poeta arrebatada que ficcionou a dita.
Desculpem,mas não me envolve nada.
O que não significa que não ache o texto lindo, e pleno de amor e arrependimento e verdadeira viagem pelo que, na vida, interessa de facto. Espero que seja uma carta real.
real ou não-real é tocante e vale pela forma como nos transporta a (quase) todo o tempo, a uma dimensão que será a que formos capazes de fazer nos outros... e o Zeca (imaginário ou não)fez!
A questão que foi colocada, é: O que é a realidade?
E verifiquei que uns têm mais necessidade que a realidade seja vivida, para outros a imaginada é igualmente aceite.
Passem bem.
E obrigada.
PM: a realidade é, o Impossível que temos de suportar.
Concordo consigo clap. E não será por isso, que a arte, qualquer forma de arte, é tão libertadora?
E não passa de imaginação, criação da mente ...
Concordo consigo clap. E não será por isso, que a arte, qualquer forma de arte, é tão libertadora?
E não passa de imaginação, criação da mente ...
Eu também me esforço por seguir sigo nessa dimensão simbolica e imaginaria dos factos da "vida".
E nem por isso me levo muito a serio...
Será a Arte sempre libertadora? haverá momentos, ou formas de Arte, que tornem a dita castradora, opressiva, limitadora, niveladora, instrumento de totalitarismo ? Isto, sou eu a navegar no conceito libertador de Arte....não me parece que seja tudo assim tão libertador, tão diáfano, tão "brisa solta", tão "imaginação não agrilhoada". mas serei eu, um parolo talvez.
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