domingo, 15 de março de 2009

Estou morto e escrevi sol




O CORPO ESPACEJADO
Perdia-se-lhe o corpo no deserto.
O corpo que dentro dele aos poucos conquistava um espaço cada vez maior, novos contornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que, isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular.
Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de que só por abstracção se chegava à noção de um todo começavam a afastar-se umas das outras, de forma que entre elas não tardou que espumejassem as marés e a própria via láctea principiasse a abrir caminho.
A sua carne exercia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, que em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía.
Ele mais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nas cinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entanto detectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pequena alteração na direcção do vento era capaz de pôr de novo a funcionar. Resolveu então plastificar-se.
Principiou pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés, mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intestinos e o coração o que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador.
Luís Miguel Nava, revista Colóquio Letras, n.º 100, p. 116, Novembro de 1987

3 comentários:

Guilherme Salem disse...

Belo.

Guilherme Salem disse...

O desgraçado não teve muitos anos para se mostrar...morreu em 1995 com uns 38 ou 39 anos...assassinado.

Guilherme Salem disse...

É claro que sei o que disse antes, graças à Net...não me estava a armar em connaisseur...