sexta-feira, 27 de março de 2009

O coveiro e o crânio de um legista


1º Coveiro
O tempo, sem que eu sentisse,
Em suas garras me enleou;
E comigo nesta terra,
Sem eu querer, me enterrou.

Faz saltar uma caveira.

Hamlet
Também aquele crânio já teve língua e também podia cantar, outrora; com que crueldade aquele patife o faz rolar pela terra juntamente como se se tratasse da queixada de Caim, o primeiro assassino! É muito capaz de ser a carcaça dum político, o crânio que este bruto tão maltrata; dum homem talvez que julgava brincar com Deus. Não é possível?
Horácio
É muito possível, senhor.
Hamlet
Ou talvez o crânio dum cortesão que poderia dizer:«bom-dia, meu querido senhor! como passais, meu venerando senhor?» Era - quem sabe? - o do senhor qualquer coisa que elogiava o cavalo de outro senhor qualquer coisa, sempre que tinha intenção de mendigar-lho; não será assim?
Horácio
É, meu senhor.
Hamlet
Sim, é isso mesmo; e agora ei-lo propriedade de Dona Vérmina; sem queixos, e mutilado no nariz pela pá dum coveiro... que transformação admirável para quem tem olhos de ver! Estes ossos custaram, pois, muito pouco a formar, porque apenas servem para jogar a bola. Doem-me os meus, só de pensar em tal...
1º Coveiro (canta)
Uma enxada e uma pá,
Um lençol, rico vestido!
Boa morada, uma cova!
Pode qualquer ser servido.
Faz saltar outra caveira
Hamlet
Mais outra! Quem sabe se será o crânio dum legista! Que é feito agora das suas subtilezas? das suas distinções? das suas espécies?
das suas conclusões? das suas ardilezas? Por que será que ele deixa este grosseiro mariola espancá-lo na carcaça com aquela suja enxada e não lhe intenta uma acção por ofensas corporais? Hum! este cavalheiro foi no seu tempo grande comprador de terras, com hipotecas, reconhecimentos, transferências, duplos fiadores, cobranças... Ora aqui está no que deu o trespasse dos seus trespasses, a cobrança das suas cobranças, para gozar a alegria de ter a carcaça cheia de lama tão bela! Não é verdade que as fianças duplas lhe não garantem outra coisa das suas aquisições, que não seja dupla posse em comprimento e largura dum espaço tão grande como um par de processos? Os títulos das suas propriedades mal caberiam nesta boceta; e para que precisa o proprietário de mais?
Horácio
Nem mais uma polegada, senhor
SHAKESPEARE, in HAMLET

2 comentários:

Anónimo disse...

Quanto criminal, tanto civel...( pressinto assoberbamento).

Bj.
Saudades

C.

Passiflora Maré disse...

Verdade Cris,
BJ.
Saudades.