As pessoas de quem gostamos são, na verdade, como cântaros – como cântaros que tivéssemos moldado a partir de um pedaço de barro. Explico melhor: a matéria humana está, como o barro, semeada de impurezas.
Se, a partir desse barro impuro, e sem o cuidado de expurgá-lo do areão que nele há, moldarmos o cântaro que há-de ser o nosso cântaro mais estimado, cujas curvas serão as mais perfeitas, porque desenhadas com as nossas próprias mãos, teremos dificuldade em reconhecer na nossa obra o defeito intrínseco que nela há: a presença das pequenas pedrinhas que são o defeito do barro, como, nas pessoas de que gostamos, as falhas de carácter que têm e as imperfeições naturais à espécie.
Terminada a fabricação do cântaro, deixá-lo-emos a cozer ao sol e logo então as impurezas, dilatadas pelo calor, começarão a minar por dentro o objecto do nosso afecto. O cântaro estalará, abrirá fendas e tornar-se-á imprestável para a função que lhe tínhamos destinado, mas, ainda assim, continuaremos a querê-lo e a estimá-lo, não já pelas suas qualidades objectivas, mas apenas por ser o nosso cântaro, aquele que é construção nossa.
E isto até ao dia em que, por fim, o cântaro se partirá em mil pedaços, revelando-nos aquilo que sempre devia ter sido óbvio: que de um mau barro não se faz um bom cântaro.
Manuel Jorge Marmelo, “Zero à Esquerda”
In http://novelosdesilencio.blogspot.com/
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