segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Pronto-a-vestir esquizofrénico


Era uma vez uma mulher que todos os dias testemunhava duas situações extremas: a alegria por um nascimento e a tristeza por uma morte. Era esse o seu truque para dar mais valor à vida. Por isso, todos os dias, vestia duas roupas diferentes.
De manhã, os vizinhos viam-na a sair de casa em elegantes tailleurs e vestidos brancos e à tarde, apenas usava roupa preta, como se carregasse um luto.
Tinha dois guarda-roupas e o seu closet estava organizado por duas cores, dois tempos, dois olhares sobre a vida.
Apesar de conhecer muitas pessoas, graças a uma vida social intensa, não teria todos os dias a alegria de visitar o bebé recém-nascido e a oportunidade de participar no triste momento do último adeus, no seu círculo familiar e de amigos.
Assim, observava a alegria e a tristeza alheias, fingindo partilhar esses sentimentos.
A visita à maternidade (tentava variar ao máximo, entre clínicas privadas e hospitais públicos, para não chamar a atenção) determinava a primeira roupa do dia.
Se a cor do luto era o preto, qual seria a do nascimento? O branco parecia-lhe a mais adequada, pelo universo promissor de tudo o que começa. E combinava tão bem com as batas das enfermeiras, o cheiro a novidade, os choros dos pulmões que trabalhavam e as fraldas por estrear.
À tarde e já vestida de preto, frequentava os cemitérios da cidade, de que guardava os rostos inconsoláveis, as árvores solitárias, as flores verdadeiras e algumas falsas tristezas. Percorria os vários anúncios em quadradinhos pretos e brancos na secção de necrologia. Escolhia um morto e apresentava-se no seu funeral como antiga colega de liceu ou prima em quarto grau.
Na maternidade fazia-se passar por tia de um bebé recém-nascido. Testemunhava alegrias e tristezas que não eram suas em dois extremos da cidade, em duas moradas separadas por muitos quilómetros de vida e com dois estados de alma opostos.
Houve um dia em que escolheu um funeral às 11 da manhã e apareceu de branco.
O erro manteve-se ao longo do dia, pois foi para a maternidade de luto.
Nesse dia, percebeu que a maternidade anuncia o começo de um fim e que o cemitério pode muito bem ser o princípio de uma nova vida.

A partir de então, decidiu vestir-se sempre de preto e branco.
Lançou uma moda logo copiada pelas amigas. Embora não soubessem explicar porquê, achavam o novo guarda-roupa dela de uma perturbante elegância.
Parecia ter alma e combinava tão bem com as contradições da vida.

MARIA JOÃO FREITAS


texto originalmente publicado na revista nós do jornal i de 1 de Agosto, a convite do seu editor Pedro Rolo Duarte

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