domingo, 2 de agosto de 2009

Uma campanha alegre


Era uma vez um marido que sentia ciúmes da sua mulher. (desculpem a banalidade do começo, mas talvez a história ainda vos surpreenda).

Não entendia por que motivo chegava ela a casa todos os fins de tarde com aquele sorriso desenhado no rosto. Poderemos ter ciúmes da solidão ou da tristeza do outro? Talvez sim, mas no caso dele, era da sua alegria e os ciúmes sentidos nasciam da forte suspeita de que ela vivia um outro amor.

Um dia, decidiu acabar com esse tormento e contratou um detective privado. Queria saber a verdade. Ela continuava a chegar atrasada e parecia cada vez mais alegre. Ele estava desconfiado de que ela tinha vidas insuspeitas mas misteriosas.

E tinha mesmo.

Todos os dias sentava-se no mesmo banco do miradouro em frente ao rio, a ler.

O livro estava forrado com uma capa branca. Parecia sempre o mesmo, aos olhos de quem passava. Mas aos seus olhos, era Madame Bovary, Anna Karenina, Orgulho e Preconceito, Os Maias, Por quem os Sinos Dobram, Gabriela, Cravo e Canela, As Mil e Uma Noites, O Conde de Monte Cristo, Em Busca do Tempo Perdido, O Amante, O Monte dos Vendavais, A Sibila ou África Minha.

Estava viciada em fantasia e na alegria de escapar da sua vida monótona. Imaginava-se uma heroína romântica na intensidade de uma vida em segunda mão.

Queria ser Odette, Quina ou Anna, cometer adultério, viver como Maria Eduarda, sentir como Gabriela, vestir-se como Emma ou Catherine, ser seduzida por um amante, chorar no século XIX e rir em Paris, descobrir-se Elizabeth ou Mercedes, ser dona de uma quinta em África ou chamar-se Xerazade, perder-se em palavras e encontrar-se num livro.

Às vezes, nos dias mais longos de Verão, chegava a atrasar-se 43 páginas ou dois capítulos e meio. Justificava-se junto do marido com uma avaria do automóvel ou com uma amiga com problemas no casamento a necessitar de desabafar. Mentia-lhe como se estivesse a ocultar um segredo terrível.

Ao fim de um mês de observação atenta, o detective privado escreveu o seu relatório. A sua mulher passa as tardes inteiras sozinha no banco de um jardim, com a cabeça ligeiramente inclinada e debruçada sobre um livro branco.

Descobrir que os ciúmes são infundados pode ser o motivo de uma enorme alegria, inexplicável para todos os outros seres humanos, pensou o marido, enquanto relia aquelas palavras.

Sem saber que nesse fim de tarde a sua mulher tinha decidido meter conversa no dia seguinte com aquele homem que, visivelmente interessado nela, passava há um mês inteiro as tardes a observá-la como o marido nunca olhara para ela, da primeira à ultima palavra.


Maria João Freitas


* texto originalmente publicado na revista «nós, alegres» do Jornal "i" de 1 de Agosto, a convite do seu editor Pedro Rolo Duarte.

1 comentário:

Maria Albertina disse...

Gostei. E a propósito de amantes... diria que é muito melhor ter um “sócio para a vida. Se for bom amante tanto melhor,mas se não for dado a fantasias sexuais, indispensável (parece-me) é que o tal” sócio” seja muito entendido em “fantasias afectivas”.
Porque afinal são estas últimas (fantasias) que tornam as outras melhores!