quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Desassossegadamente


"Hoje, como me oprimisse a sensação do corpo aquela angústia antiga que por vezes extravasa, não comi bem, nem bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja sobreloja baseio a continuação da minha existência. E como, ao sair eu, o criado verificasse que a garrafa de vinho ficara em meio voltou-se para mim e disse: «Até logo, sr. Soares, e desejo as melhoras.»
Ao toque do clarim desta frase simples a minha alma aliviou-se como se num céu de nuvens o vento de repente as afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reconhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos barbeiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma simpatia espontânea, natural, que não posso orgulhar-me de receber dos que privam comigo em maior intimidade, impropriamente dita…
A fraternidade tem subtilezas.
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, um César ou Napoleão, ou Lenine, e o chefe socialista da aldeia – não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.


Bernardo Soares,Livro do Desassossego (Pessoa 1888-1935)

2 comentários:

DI disse...

O desassossego embala as nossas vidas, causando uma insegurança e insatisfação sem fim...É curiosamante o que é insignificante que parece, então, ser importante.Qual a escolha a fazer: «governar» ou «ser governado»? A opção, essa, é de cada um...

Anónimo disse...

Governar é um sossego ou desassossego? Pela quantidade de sss a segunda... E ser governado? Uma espécie de fatalidade que não está em vias de extinção.