quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Um anjo à minha mesa


Por ali passei eu.
E li uma pérola.
Gostava de ter conhecido o D.
Por ser primo da R. e por ter tido (ainda tem) alma de poeta...
É que os poetas não morrem!
Desculpa, amiga, mas tive de lhe oferecer uma magnólia.

«O D. era meu primo. Tinha os olhos mais bonitos que vi até hoje. Negros, brilhantes, com reflexos do Mundo. Tinha o cabelo muito liso, escorregadio, negro também. O D. tinha uma pele muito branca e muito macia. Umas mãos sempre quentinhas e uns dedos compridos. O D. não falava, não andava, não mexia os braços ou as mãos. O D., às vezes, nem segurava bem a cabeça. Nasceu aparentemente bem. Há registos fotográficos dele com um futuro mais do que promissor à frente. Adorava aviões. Podia ter sido piloto. O D. também podia ter sido poeta. Porque tinha na alma a capacidade inata de falar sem palavras, de se declarar sem verbos. O D. amava com o olhar, com a expressão, com o sorriso. O D., não falando, deixava claro tudo o que o fazia feliz e tudo o que o aborrecia a sério. Teve momentos felizes. O D. cresceu. Mais velho do que eu, aprendeu sozinho que a adolescência lhe ditava regras mais duras de suportar. E que o amor, ali por altura dos dezassete, podia bem ser uma coisa tão séria que não suportasse a morte. Por isso, vi-lhe algum desconforto no olhar quando assisti à sua última crise respiratória. Dei-lhe a mão a tempo de entrar na ambulância. Deixei de lhe fazer festinhas nas pestanas e passei a dar-lhe a mão menos vezes. Já não lhe apanhava tantas flores e empurrava-lhe a cadeira mais devagar no caminho para o mar. Fomo-nos despedindo com calma. O D. teve a mãe coragem ao lado dele. É minha tia. E o pai mais doído do peito. É meu tio. E a família mais incrédula. É a minha. O D. podia ter tido uma vida de sonho. Mas morreu no princípio. E viveu com a alma presa num corpo que nunca lhe obedeceu. O D. era meu primo. Morreu há catorze anos. O D. é o meu anjo-da-guarda, para sempre. Porque o D. estava para ser... e foi, também comigo»


Da R.


Beijo eterno.

2 comentários:

DI disse...

Aqueles que amamos vivem dentro de nós para sempre...
Numa saudade sentida no bater do nosso coração.
Excelente escolha musical.

Guilherme Salem disse...

Todos temos um, pelo menos, anjo que nos acompanha. Anjo feito daqueles que partiram para sempre.
Gostei muito. Um Beijo César...deixa-me morrer primeiro para ser um outro anjo da guarda teu.