quarta-feira, 19 de maio de 2010

Para o Mário, com uma flor...


Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo, A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh’alma nostálgica de além
Cheia de orgulho, ensombra-me entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobre um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

È subir, é subir além dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados rezar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e de irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

È suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção de alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido.
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de oiro e chama distendido…

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra vertigem, ascensão – Altura!

Eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva os cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem roxa de nimbado encanto –
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de oiro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz…

(…)

O bando das quimeras longe assoma…
Que apoteose imensa pelos céus!
A cor já não é cor – é som e aroma!
Vêm-me saudades de ter sido Deus…

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro – é alto e é raro.
Unicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois…

Mário de Sá Carneiro
(Do Livro “Dispersão”)
No seu natal de há 120 anos
(Foto: MAP)

1 comentário:

Anónimo disse...

A sua obra está intimamente relacionada com a sua vivência pessoal.
" Perdi-me dentro de mim
porque eu era o labirinto
E hoje, quando me sinto
É com saudades de mim"

( do mesmo Autor)

Que bom P. trazer aqui escritos tão belos e carregados de sentimento.
Parece que nos estamos a ver ao espelho.
Ele também quase um peta das leis

Beijinhos
Tenho nome de Flor