quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A fala de ninguém


É natural que um dia alguém vá ler
este poema e outros que entretanto
escreva na ilusão de serem meus.
Farão com eles mais ou menos isso
que também eu agora me entretenho
a fazer aos poemas que folheio
doutros autores lidos e delidos
em busca de crateras por onde entre
ou saia a lava dos sentidos, nómadas
e breves como os sonhos que as estrelas
deixam escritos no céu sempre que morrem.

Mas que ofício perverso, o de brilhar
como os planetas, reflectindo apenas
a luz dos astros alheios que supomos
ser útil ou possível transmitir
obedecendo a temas, a motivos
que interpretem, definam e expliquem
tudo o que nunca teve nem terá
qualquer explicação e fica imerso
no magma ainda quente dos vulcões
nascidos por encanto ou por acaso
de cinco ou seis palavras no momento
em que o sentido as ama e as devora,
infiel a si mesmo, à voz que o diz,
e nos deixa mais perto de saber
que todas as metáforas são ocas
e que a sua verdade é um engano
tão cintilante como o próprio nada
quando o vemos florir, fora do tempo,
na consistência vegetal das frases,
no rápido cristal da eternidade
que de súbito as move e nos ajuda
a decifrar alguma lei errante
onde se jogue o mais secreto assombro.

E mesmo isso, que julgamos nosso,
vibrou apenas em segunda mão
no trânsito sombrio que leva a lava
os nomes e as razões, até restar
a fala de ninguém para ninguém,
esse coro de trevas dissonantes
onde mal inventamos os arpejos
de uma «lira de líquen» ou de cinza
capaz de segredar-nos ao ouvido
o som artificial mas sempre belo
das sílabas correndo como lágrimas
por entre um rio de versos poluídos.

Fernando Pinto do Amaral, "Às Cegas",1997

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