quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Fingir



fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.



José Luís Peixoto

2 comentários:

Anónimo disse...

O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor.
A dor que deveras sente,

E os que Lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm

E assim nas calhas da roda
Gira,a entreter a razão
Esse comboio de corda
que se chama coração

Fernando Pessoa

Tenho nome de Flor

DI disse...

Fingir é o destino de quem espera pela temporalidade das coisas, confiando que depois do fim há sempre um início.A esperança faz-nos viver...