quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O cego que conduz o cego (um eléctrico chamado desejo)


Um Eléctrico Chamado Desejo” é uma obra-prima da dramaturgia do século XX que estabeleceu Tennessee Williams como um dos maiores autores americanos.

Aqui retrata-se o confronto entre os valores tradicionais do Sul da América e o materialismo agressivo da América moderna.
Blanche DuBois, uma frágil e solitária beldade sulista, decide visitar a sua irmã, Stella, que vive num bairro pobre de Nova Orleães.
Numa altura em que a sua vida se encontra em declínio, Blanche acaba por se confrontar com o marido de Stella, Stanley Kowalski, cujo temperamento rude tanto ofende como atrai a sua educada sensibilidade.
Enquanto o jazz dos anos 40 enche os bares locais durante a noite, as tensões crescem até atingirem um ponto de ruptura inevitável.

Claro que, tal como os fantasmas da vida de Blanche, outros de celuloide, a preto e branco, hão-de ensombrar todas as representações que se fizerem de O Eléctrico...
É impossível não fazer um link mental direto para versão cinematográfica, realizada por Elia Kazan, quatro anos depois da peça, em 1951 (12 nomeações e quatro estatuetas) e para as forças antagónicas e magnéticas, ao mesmo tempo repulsivas e atrativas que moviam Marlon Brando e Vivien Leigh.
Diogo Infante obrigou-se a não rever o filme, recomendou o mesmo ao elenco. "Quis voltar à génese que é o texto. Para que não ficássemos impressionáveis perante uma versão tão feliz como a de Elia Kazan. Para poder ter um olhar genuíno e fresco sobre o texto, e sermos nós a encontrar os subtextos e a própria organicidade nas relações entre as personagens".
Não lhe interessou também transportar a ação para os tempos atuais. Afinal, se se passasse agora, comenta Alexandra, a única diferença é que talvez "as pessoas fumassem e bebessem menos" ou talvez se drogassem mais, "mas, de resto, a peça é incrivelmente atual", continua Diogo.
É sobre a amargura, a desilusão, o vício, o alcoolismo, a dependência, o desejo, a loucura. É tudo tão pungente e trágico. "Na essência, é uma peça sobre a natureza humana, refletida por Teneessee Williams de uma forma crua. Não é tanto sobre a maldade, é mais sobre a incapacidade de se colocar na pele do outro".
Quase um duelo, com um perdedor anunciado à partida, que é o que acontece quando o leão e o cordeiro habitam a mesma casa. "E uma questão territorial, também", acrescenta Albano que encarna a rudeza, a sedução animalizada do macho, e uma nova América miscigenada que implode face à sofisticação decadente dos sulistas.

Mas, apesar deste distanciamento assumido do filme, e desta descontaminação intencional, a peça tem toda ela uma dimensão cinematográfica. Kazan transformara uma peça confinada a um só cenário num objeto cinematográfico, cheio de acção e emoção. Diogo Infante trouxe muito cinema para dentro da peça.
A começar pelo dispositivo giratório do palco, que transforma em travellings as mudanças de cena, criando a ilusão de movimentos de câmara, seguindo sempre as travessias de Blanche (é sempre ela que a "câmara" segue), entre aquele pedaço de rua e as duas divisões da casa.
Mas também nos jogos de luz, na profundidade de campo, criando-se pontos de tensão priveligiados, enquanto outra cena prossegue em segundo plano, ou noutra perspectiva, lá atrás. E o público fica muitas vezes entre o que vem e o que fica.
"Isso tem a ver com a minha formação, com o meu gosto pelo cinema e, de facto, esta peça pede um olhar plástico", continua Infante. Mas também são cinematográficos os sons, o guincho do gato assanhado como uma premonição, o piano melancólico, o jazz dos anos 40, a polka que só Blanche escuta antes do tiro (aliás, indicações precisas do próprio Tennessee).
E em certas alturas, escuta-se um comboio, que sempre sobressalta muito a protagonista.
Ela sente que a cada passagem, vai-se deixando ficar para trás, num apeadeiro longínquo, a acenar. Os sonhos são ainda o que a fazem manter-se acordada.
Até ao despertar definitivo, ao embarque para um manicómio e à célebre réplica final: "Sempre dependi da bondade de estranhos".


Alexandra Lencastre no seu melhor, regressada aos palcos, de onde nunca deveria ter saído.
Albano Jerónimo, o melhor em cena.
A encenação, um primor!
No Teatro Nacional D. Maria II, visto por mim sexta passada.

Grande Noite!

1 comentário:

Anónimo disse...

A critica fala muito bem !
Tenho nome de Flor