quarta-feira, 22 de junho de 2011

Filial




Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada

daquilo que disseste quando os meus seios começaram

a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,

murcharam tão depressa as rosas que me deram –

se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu

deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.



Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão

cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,

só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais

que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos

os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,

deitei-me com mais homens do que aqueles que amei

e o que amei de verdade nunca acordou comigo.



Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre

caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.

Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez

não chames pelo meu nome, não me peças que fique –

as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me

embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue

de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como

uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.



Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem

nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta

hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas

essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre

o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.



Maria Rosário Pedreira in O Canto do Vento nos Ciprestes

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