Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz. Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem. Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade uma ideia de pedra e de brancura. És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves, que te alimentas de desejos puros. E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola, a sombra canta baixo. Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua, onde a beleza que transportas como um peso árduo se quebra em glória junto ao meu flanco martirizado e vivo. - Para consagração da noite erguerei um violino, beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada darei minha voz confundida com a tua. Oh teoria de instintos, dom de inocência, taça para beber junto à perturbada intimidade em que me acolhes. Começa o tempo na insuportável ternura com que te adivinho, o tempo onde a vária dor envolve o barro e a estrela, onde o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida ingénua e cara, o que pressente o coração engasta seu contorno de lume ao longe. Bom será o tempo, bom será o espírito, boa será nossa carne presa e morosa. - Começa o tempo onde se une a vida à nossa vida breve. Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna salina, imagem fechada em sua força e pungência. E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado em torno das violas, a morte que não beijo, a erva incendiada que se derrama na íntima noite - o que se perde de ti, minha voz o renova num estilo de prata viva. Quando o fruto empolga um instante a eternidade inteira, eu estou no fruto como sol e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada matriz de sumo e vivo gosto. - E as aves morrem para nós, os luminosos cálices das nuvens florescem, a resina tinge a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã. E estás em mim como a flor na ideia e o livro no espaço triste. Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento na cevada pura, de ti viriam cheias minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses em minha espuma, que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? - No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore dormindo e acordando onde existe o meu sangue. Beijar teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante. - Eu devo rasgar minha face para que a tua face se encha de um minuto sobrenatural, devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz. As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente a nossa vida. As sombras que rodeiam o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo - aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso, no peixe, no cubo, no linho, no mosto aberto - no amor mais terrível do que a vida. Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz o perfume da tua noite. Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua e branca das mulheres. Correm em mim o lacre e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca ao círculo de meu ardente pensamento. Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam sobre o teu sorriso imenso. Em cada espasmo eu morrerei contigo. E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente das urzes, um silêncio, uma palavra; traz da montanha um pássaro de resina, uma lua vermelha. Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos, casa de madeira do planalto, rios imaginados, espadas, danças, superstições, cânticos, coisas maravilhosas da noite. Ó meu amor, em cada espasmo eu morrerei contigo. De meu recente coração a vida inteira sobe, o povo renasce, o tempo ganha a alma. Meu desejo devora a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma de crepúsculos e crateras. Ó pensada corola de linho, mulher que a fome encanta pela noite equilibrada, imponderável - em cada espasmo eu morrerei contigo. E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro da tua entrega. Bichos inclinam-se para dentro do sono, levantam-se rosas respirando contra o ar. Tua voz canta o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo. Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo. Herberto Helder
domingo, 19 de junho de 2011
Mulher com vista sobre a cidade
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1 comentário:
Que nada nem ninguém atormente os meus sentimentos.
Que as saudades sofridas não me separem do carinho!
Que o amor fale sempre mais alto, calando algumas tempestades...
Que as cores mais belas consigam sair das brumas perdidas nos céus.
Que eu consiga manter as asas e possa contigo sempre voar!
Tenho nome de Flor
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