sábado, 17 de março de 2012

cansaço

Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias, nos cinemas,
flácido, impenetrável, como um cisne de feltro
que navega numa água de origem e de cinza.

O odor das barbearias faz-me chorar aos gritos.
Quero só um descanso de pedras ou de lã,
quero não ver estabelecimentos nem jardins,
nem mercadorias, lunetas, ascensores.

Acontece que me canso de meus pés e minhas unhas,
de meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.

Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.

Não quero continuar a ser raiz nas trevas,
vacilante, estendido, a tiritar de sono,
descendo, nas cercas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, a comer dia após dia.

Não quero para mim tantas desgraças.
Não quero fazer mais de raiz e de túmulo,
de subterrâneo só, de adega com defuntos,
inteiriçados, a morrer de angústia.

Por isso a segunda-feira arde como petróleo
quando me vê chegar com cara de prisão,
e uiva no seu decurso qual uma roda ferida,
e dá passos de sangue ardente rumo à noite.
E empurra-me para certos recantos, para certas casas húmidas,
para hospitais onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com odor a vinagre,
para ruas medonhas como fendas.

Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que odeio,
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deveriam ter chorado de vergonha e pavor,
há guarda-chuvas em toda a parte, e venenos, e umbigos.

Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.


PABLO NERUDA
 
 
Ao G.

4 comentários:

Anónimo disse...

Sempre achei este poema belíssimo.Acontece que ( tantas vezes!) me canso de ser pessoa.

E é tão natural ver o G. ( é o GIUI, não, P ? ) a ir pelas ruas com uma faca verde e aos gritos até morrer de frio..É uma sua bela imagem...

Bj.
C en)

César Paulo Salema disse...

como sempre, certa, C. Teu eterno fã (malgré tout!!!)

Anónimo disse...

Malgré tout (tant!)....

Então e um pequeno hino aos nossos pais, P.?
Por estarem connosco, o que hoje (já) basta.

Bj.
C (en)

Guilherme Salem disse...

Nem sei que diga...eu de faca em pubnho pelas ruas até morrre de frio...não está mal...seria capaz disso...e muito mais..beijosa todos Vós