A ele tudo lhe doía.
O corpo cansado e envelhecido, depois de
tanta atrocidade a si feita, parecia cambalear e ofuscar toda a
criatividade intelectual do seu autor.
Salvador, de sua graça.
Como o Toto de Cinema Paraíso.
Um passado de descoberta e redenção pelo eterno Cinema que acabou por o salvar.
A sua única angústia foi não ter conseguido salvar Marilyn e Nathalie
Wood, suas heroínas das fitas (quando as outras heroínas, mais
psicadélicas e químicas, pareciam, afinal, o seu destino).
Cresceu descobrindo-se diferente (e a cena do seu primeiro desejo é sublime).
Cresceu sabendo que queria filmar as suas histórias e os retratos
familiares que ia conhecendo (apesar da admoestação materna pelo facto
de retratar vizinhas sem que elas o soubessem).
Sempre com dores.
Com muitas dores.
E, tarde, depois de conheceu outro vício tardio, consegue inspiração, afinal, para voltar a filmar.
Como se nunca o tivesse deixado de fazer.
Há ainda esperança para Salvador.
Antes de o anestesiar para a operação à garganta, o médico pergunta-lhe
como se sente, e se está a trabalhar nalgum projecto, e ele responde:
“Oh, doutor, sim, estou a escrever uma coisa.”
Afinal, Salvador Mallo, tal como Pedro Almodóvar, ainda tem tantas histórias para dizer.
*
DOR e GLÓRIA é Almodóvar da pura estirpe do «Fala com Ela» e do «Tudo
sobre minha mãe», dois dos filmes mais geniais que vi na vida.
Aqui se redescobre o mundo e os mundos de Almodóvar.
O Salvador é o seu alter-ego (vejam como as letras de Salvador Mallo se convertem, à laia de anagrama, em ALMODOVAR).
Há um Federico. Sem oito e meio motivos para se fazer à estrada.
Há uma criança que se descobre homossexual num meio rural e católico, dois homens maduros que se beijam ternamente...
"Sou dono das minhas histórias e imponho o meu universo com todo o
orgulho e toda a prepotência que isso outorga", disse Almodóvar ao site
espanhol eldiario.es.
"E no meu universo há dois senhores mais
velhos que se beijam com paixão e, logo depois, um deles volta para a
sua vida com a sua mulher e seus filhos", acrescentou.
Aos 69 anos,
Almodóvar volta a filmar os olhares de uma das suas actrizes fetiche,
Penélope Cruz, a quem confia um papel proeminente, a de jovem mãe que se
depara com os problemas, mas que se ilumina ao cantar na lavandaria.
E António.
Como nunca o vi.
Banderas, um actor elevado à glória, mas que sofreu a dor pessoal, com
várias operações de coração nos últimos anos - ele consegue expressar a
vulnerabilidade de um criador mergulhado no seu apartamento-museu para
quem a sua vida "perde o sentido" sem filmar.
As cadências, os detalhes, os pormenores, as cores, sempre as cores...
*
Espalhem a notícia.
ALMODÓVAR voltou.
Com muita dor e sem anestesia.
sábado, 7 de setembro de 2019
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