ias - e ali naquele espaço e tempo de formação inicial de magistrados também se fez teatro, aconteceram recitais de poesia, debateram ética e estética, privaram com gente como Luís Miguel Cintra e Natália Correia [Laborinho Lúcio foi um dos frequentadores do bar Botequim], deliciaram-se com concertos de fim de tarde e o jovem auditor Paulo Guerra descobriu um admirável mundo novo). Actualmente é desembargador, em Coimbra, embora em comissão de serviço como dirigente superior na única escola de magistrados em Portugal.
É conferencista em inúmeros seminários/encontros/congressos. Formador em Portugal, Espanha, França, Macau e Moçambique. É Associado do Centro de Direito da Família e membro do Observatório Permanente da Adopção.
O amor é-lhe mais natural do que a raiva. Trabalha há muito no mundo das crianças, ramo jurídico que sempre o arrebatou e onde tem recebido há largos anos ‘o melhor dos seus cantos judiciários’.
Tem publicado, ao longo da sua carreira, várias obras no âmbito do direito de família e das crianças. Durante esta pandemia, os sinos deste leiriense com 32 anos de profissão têm dobrado pelos mais vulneráveis e é um acérrimo defensor de uma cultura da criança. E, nisto dos mais pequenos, nunca é de mais lembrar que o que está em causa é o superior interesse dos miúdos. Conhece e bem a solidão da decisão, mas tem mais vida para além dos processos.
É muito mais do que um estudioso da dogmática jurídica, docente e jurista de mérito por terras de Alfama. Trata-se de alguém com uma tumultuosa vida cultural dentro de si. Com 20 anos, foi galardoado com o I Prémio Literário da Associação Académica de Coimbra ["A Literatura na Universidade"], tendo a sua escrita sido distinguida com outros prémios.
A paixão pela sétima arte levou-o a colaborar durante anos nas páginas do "Jornal de Leiria", onde assinava a coluna "Condição Cine-qua-non"), tendo ainda participado em programas na Radio [pirata] Clube de Leiria ["A Nau da Bonança"]. Foi fundador de um jornal regional. É uma espécie de cirurgião geral num hospital de brinquedos, onde reconstitui o mundo de sonhos dos sobrinhos. Aventurou-se pelo universo da blogosfera.
Sempre falou e escreveu num estilo tão pessoal [assistam on line a várias moderações do jurista e acompanhar-me-ão nesta minha avaliação]. E continua a escrever ["Guerra Franca - Uma Sonata a Duas Penas", "Como Se Não Fossem Pedras" …]. Esperei-o na madeira do cais onde chegou à boleia num copo de chuva. Resultou esta conversa onde fala como quem faz poesia. E nesta publicação prostiana a instância é toda dele.
[Em tempos de isolamento social ouso interpelar várias personalidades das artes e das ciências. Publicarei uma ou mais entrevistas/questionários por semana que ficarão arquivadas neste mural num álbum – Galego Armado Em Proust – criado para o efeito, podendo ser consultado sempre que queiram. Apenas (?) solicito aos meus digníssimos entrevistados uma enorme paciência. Esta é a centésima quarta entrevista].
‘[…] No fundo, «o inferno são os outros», certo?’.
1. Qual é a primeira memória que tem? Que tempo foi esse?
É difícil descortinar se foi mesmo a primeira – mas tenho de invocar o salvífico cheiro do creme NIVEA posto por minha Mãe aquando das idas à Praia das Miragens, em Moçâmedes, Angola, nos idos dos anos 60, onde os nossos pés mal conseguiam aguentar o quente da areia branca numa praia de outro mundo onde, como diria Mia Couto, «as raças eram fardas que vestíamos». Está tão presente na minha memória que até dói – o tempo foi o da minha infância mais do que perfeita.
2. Ainda se lembra do nome d@ primeir@ namorad@?
Só tive uma namorada – a mulher com quem me casei em 1992, de nome Constança, e com quem namorei durante quase sete anos.
3. Aos 15 anos o que desejava ser quando adulto?
Aos 15, idade dos deslumbramentos, queria ensinar. Mesmo. Na escola tinha alunos imaginários com quem estudava e apreendia as matérias no meu magnífico Liceu de Leiria – fazia provas, dava notas, compunha turmas, um delírio…
4. Que formação, que não Direito, gostaria de ter frequentado? Que profissão, que não fosse jurídica, gostaria de ter exercido?
Sempre fui um homem das letras.
Fiz o meu Liceu em Leiria e em 1981 entrei para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ainda com 17 anos, hesitando muito na escolha do Curso Superior pois o meu coração e os meus afectos pendiam para a Filosofia, formação que gostaria também de ter tido em termos universitários.
Quanto a profissão alternativa, seria sempre argumentista de cinema pois escrever ficção é a minha vida alternativa – onde as pétalas se tocam, onde os homens e as mulheres se cruzam, onde os sentidos se misturam, sem doses certas e a horas incertas.
5. Quem e como são os seus amigos?
Não são muitos mas são muito bons - domo diria Pessoa: «meus amigos são metade loucura, outra metade santidade, escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante, escolho-os pela cara lavada e pela alma exposta; quero-os metade infância e outra metade velhice, crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa».
Venero os opostos etários – as crianças e as vetustas gentes que me ensinam tanto, uns e outros.
6. É um Homem que chora?
Imenso. Sem pruridos ou pudores.
As obras de arte fazem-me chorar, a beleza faz-me chorar. Sem aviso. Ou sinais de alarme.
7. De que cor é o seu maior medo?
O meu maior medo é da cor da perda dos meus entes queridos.
8. "Na cova do lobo não há ateus". Como avalia a sua Fé?
A Fé é o meu bordão de salvação – sempre a tive, primeiro ensinada e imposta, depois intuída e praticada na Religião Católica Apostólica Romana.
A completa paz é encontrada numa qualquer igreja de fim de tarde, em qualquer local onde me encontre com Ele.
Parto muitos segundos em oração.
E, por isso, recupero aqui o que escrevi em 2013, depois de uma inolvidável peregrinação à Terra Santa, em companhia de dois sacerdotes jesuítas:
«Fui ver um Homem Bom.
Com a certeza de que viria de lá ainda mais crente.
Como se fosse possível!
Mas fui, embalado pela doce notícia de que em Jerusalém sempre entram mais almas, umas desencontradas, outras em busca de uma bússola.
E quando pisei as águas da Galileia, numa barca náufraga de esperança, quando molhei os olhos no Gólgota de todos nós, senti-me mais eu, mais junto da Divindade, aquela que se fez Homem por todos nós, pelas nossas imperfeições, pelas nossas iniquidades.
E ouvi de novo as bem-aventuranças, vi o Cristo transfigurado no Monte Tabor onde a vista se perdeu de vista, ouvi os sussurros dos pastores em busca da Estrela da Natividade, o espanto de Isabel, a prima infértil, as novidades do filho João Baptista, o eco de Emaús, o reconhecimento de um Cristo ressuscitado na palma das nossas mãos de peregrinos.
E ouvi gritar, mais uma vez, «Abba, porque me abandonaste?», como se fosse um canto de hoje e uma súplica de esperanto, calcei as pedras das tentações, os musgos de Cafarnaum, as tulipas de Nazaré, sorri com o sorriso do Pai José, paciente e solene, molhei as pontas dos dedos no Jordão, deitei-me no morto mar, como se fosse uma entidade viva.
E na cidade velha, vi - ufanas - estações de uma Via Sacra, túmulos e sepulcros, marias e martas, grutas de traição, Pai nosso que estais no céu...
E quando entrei em Jerusalém, pensei serenamente nas marcas do Crucificado e reti as lágrimas que trazia guardadas do canto lusitano, à espera de depósito.
Por isso, por causa disso, dessa hora sexta da nossa existência, voltei serenado.
Até ao próximo calvário de todos os dias...
Até que Ele me volte a dizer palavras sábias...
9. De quem mais sente falta?
Do meu Pai Joaquim e da minha Sogra Maria de Fátima. Pela superioridade cívica e pelo exemplo.
10. Qual é a sua característica mais marcante? E a que mais detesta?
A mais marcante é de ser um radical idealista que venera as palavras.
A que mais detesto é a falta de coragem para enfrentar as tempestades.
11.E a que mais antipatiza nos outros?
A deslealdade e a inveja.
12. Como é que lida com a frustração?
Muito mal. Terei baixa tolerância à frustração mas trabalho todos os dias para me emendar.
13. Como define o território da [sua] intimidade?
Como escrevi no meu primeiro livro de poesia, A vida é uma magnólia, defino-o como «um duende à solta no meu peito, perto do canto mais estreito dos meus dedos, longe da esquina mais larga do meu espanto».
Em tempos de facebook, sei que a margem é mais ténue e menos opaca. Mas tenho gerido bem essa cambraia fina de violinos e recatos.
14. Ri facilmente de si próprio?
Sim e sem muita dor associada.
15. Interessa-lhe o que pensam de si?
Mais do que intuo, afinal.
No fundo, «o inferno são os outros», certo?
16. Que pessoa viva mais admira? E a que mais despreza?
Para mim está vivo. Por isso, o nomeio de novo. A pessoa que mais admiro é o Santo João Paulo II, Papa do Mundo, poeta das neves e encenador de uma nova Igreja, subido a outra instância em 2 de Abril de 2005.
Quanto a desprezos, tenho para mim que desprezar é pouco ético e cristão. Mas não posso deixar de referir que o Presidente Donald Trump, infelizmente, hoje governante do país da minha muito amada avó materna, é a pessoa que mais desafia a minha paciência e que mais me faz corar de vergonha alheia.
17. Qual é a qualidade que mais aprecia numa mulher? E num homem? Ou o género não é relevante para esta apreciação?
Não distingo o género – sempre, a capacidade de se reinventar e de se espiritualizar, saindo da dimensão material de que nos vestimos com mais frequência.
18. Quando um homem se diz feminista acha que as mulheres acreditam?
Ignoro. Eu acredito.
19. Que é que o atrai num ser humano [quimicamente falando]?
Os olhos e o verbo.
No fundo, o amor é um lugar estranho.
20. Por quem esperava o Paulo Guerra naquele dia no cais “‘[…] vestido a rigor, de verde mar incendiado, de anil cor do fogo que aquela água apaga”?
Esperava pela musa da criação, pelo ser amado, pela brisa da tarde.
21. É capaz de guardar um segredo? [sei que vai dizer que sim, mas ainda assim peço que me surpreenda]
Não
guardo esse segredo se eu souber que o segredo implica dor e
sofrimento, ainda evitáveis, para o ser que mo confiou.
Na verdade, não me canso de chamar à colação o artigo 66º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em perigo, aplicável a todos os cidadãos ou residentes em Portugal, a todos NÓS, pois então - qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações de perigo para uma criança pode comunicá-las às entidades com competência em matéria de infância ou juventude, às entidades policiais, às comissões de protecção ou às autoridades judiciárias.
E essa comunicação é obrigatória para qualquer pessoa que tenha conhecimento de situações que ponham em risco a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade da criança ou do jovem.
22.
Racismo: todos sabemos que existe, mas ninguém acha que é racista. Como
interpreta?
Somos um país racista pois haverá sempre homens e mulheres racistas, independentemente do que verbalizam.
Como escrevi em tempos:
«Preto ou Branco, era a questão!
No dia em que Rose Parks, costureira negra de meia-idade, foi impedida de se sentar no primeiro lugar vago de um autocarro branco quase vazio, alguém gritou, sem ter tempo para falar: "Black is beautiful"
No dia em que dois negros se matricularam na Universidade de Alabama, um país tremeu nos seus frágeis e brancos alicerces espirituais.
No dia em a Ku Klux Klan reviveu um antigo terror, as forças do poder calaram seus tambores e falaram em neutralidade.
Houve reis que nunca usaram tiaras
e que, em vez de trono, sentaram-se em púlpitos,
decretando para o seu moreno povo
as medidas de emergência que urgia tomar.
Porque será que ficou escrito que o Rei-Pastor - David - haveria de morrer?
Preto e Branco, para quê a questão?»
(A Vida é uma Magnólia, 2014)
23. O antropólogo José Pereira Bastos defendeu que Portugal devia pedir desculpa aos ciganos. Exagero do investigador?
Concordo.
Não consigo deixar de pensar que fomos todos nós, os outros, também a empurrá-los, muitas vezes, para o terreno da marginalidade e da segregação.
No reino do Direito das Crianças, podemos ser levados a aceitar o abandono escolar de uma jovem cigana de 15 anos (i.e. em idade de escolaridade obrigatória), por “razões culturais”, decisão erroneamente sustentada em três pontos: 1)- Primeiro, “a criança não demonstra motivação para frequentar a escola, ajudando a mãe nas tarefas domésticas” – o facto de ser “de etnia cigana, e de cumprir com as suas tradições”, leva-a “a considerar que não necessita de frequentar a escola”; 2)- Segundo, a jovem “possui as competências escolares básicas, por necessárias, ao desenvolvimento da sua actividade profissional” e à “integração social no seu meio de pertença” e 3)- Terceiro, o desenvolvimento dos jovens para uma vida digna passa, por vezes, “por caminhos diversos e igualmente recompensadores que não simplesmente a frequência da escolaridade até à maioridade”.
Ora, é enganador reduzir este caso a uma disputa teórica no domínio do Direito, em que o direito à identidade cultural se sobrepõe ao direito à educação. Há muito mais que analisar. Nomeadamente, duas questões-chave: uma certa tolerância para com a discriminação e a dificuldade da escola pública em promover efectiva igualdade de oportunidades.
Em
suma, todas as crianças, independentemente da sua tradição ou afiliação
cultural
devem ter direito à escolaridade.
Que haja criatividade nas vias de solução deste problema.
E que haja prioridade em:
Melhorar o conhecimento da situação escolar dos alunos e formandos ciganos na escola – onde é que elas estão?;
Garantir o acesso à Educação Pré-Escolar - o pré-escolar assusta cada vez menos as famílias ciganas. Já o tinham frequentado 62% das crianças que entraram para o 1.º ciclo em 2016. E isso “é fundamental para um percurso escolar bem sucedido”, diz Maria José Casa-Nova;
Aumentar os índices de escolarização, garantindo que todas as crianças ciganas completam a escolaridade obrigatória - existem quase tantas raparigas como rapazes a frequentar esse nível de ensino (elas são 46% dos alunos), apesar de eles não terem “constrangimentos socioculturais”. Estarão as raparigas a provocá-la. “São aquelas que revelam maior vontade de continuidade escolar”;
Promover a continuidade da escolarização a nível do ensino secundário, incentivando à formação superior;
Prevenir o abandono escolar precoce;
Garantir o acesso à aprendizagem ao longo da vida;
Promover a formação de agentes educativos na diversidade da cultura cigana, com a participação de elementos dessas comunidades enquanto formadores e interlocutores privilegiados;
Promover o combate à iliteracia.
24. O que responderia a quem que lhe perguntasse ‘A minha filha sente-se um rapaz. O que posso fazer?’
Ouvi-lo e compreender as suas razões.
Serão apenas passageiros ímpetos de moda? Ou será mesmo um genuíno grito de quem não se sente aquilo que a Natureza ditou?
E mencionaria a esse progenitor que existe uma lei portuguesa que permite a mudança de sexo e nome no cartão do cidadão a menores de idade, a partir dos 16 anos, publicada a 7 de agosto de 2018 e entrada em vigor no dia seguinte, lei essa que, desde então, já permitiu a 29 pessoas com menos de 18 anos concluírem o processo.
Poucas pessoas? Bastaria uma que fosse.
25. Eu não vou em touradas! E o Paulo Guerra?
Nunca vi e não vou em touradas mas não diabolizo as pessoas que dizem gostar.
26. Laura
Ferreira dos Santos na sua luta “pelo direito a morrer com dignidade” implorava
“só peço o direito a não morrer aos bocadinhos.”. Eutanásia: crime ou
compaixão?
Nesta resposta, sou assertivo e radical.
Fui criado e muito amado por um PAI ímpar que foi acometido por um terrífico AVC em 2007, num Verão tremendo em que em Leiria não havia, hospitalarmente, máquina para fazer TAC.
Havia SNS mas de nada lhe valeu.
E a morte instalou-se, sem apelo nem agravo, em sua vida, na vida de minha mãe, na minha vida e do meu querido irmão.
Deixou de falar. De andar. Nunca de sorrir.
Nunca lhe desejei o fim.
NUNCA.
Nem a minha mãe que dele cuidou todos os dias - durante NOVE anos - como se
fosse o primeiro.
E sei que me olhava sempre como se me agradecesse todos os dias em que ainda me
podia ver.
Sabia que o seu Deus o haveria de levar para junto de Si. Como está escrito que
seja.
E a Medicina tem a obrigação de velar pela saúde dos seus Filhos até que a
Morte se instale naturalmente.
Teria mais exemplos para dar.
Mas por respeito pela dor da Constança calo-me [apenas direi que me assusta a forma como a Medicina escolhe quem quer deixar viver ou morrer - a decisão médica para se entrar numa Unidade de Cuidados Intensivos é guiada por critérios que não compreendo nem nunca aceitarei, como utente de um SNS que todos, nestes últimos dias, não se cansam de elogiar: e ainda nos perguntam quais as nossas expectativas relativamente ao ente querido!?? (cena vivida em Abril de 2018 num hospital da cidade dos doutores)].
Respeito quem discorde de mim.
Como exijo que me respeitem. E ao meu pai que queria viver.
Sei que há gente que quer morrer.
E escolhe morrer.
Por suas mãos.
Nunca os compreendi mas entendo a dor avassaladora que naquele momento os faz acreditar naquele desejado fim.
Mas não compreendo que terceiros matem por amor.
Ou por qualquer outra forma de obsessão.
Porque tenho a vida como dom e bem (jurídico) maior...
Por isso, reitero: conheci demasiado de perto cenas familiares de morte em vida e, por isso, ou não obstante isso, penso que a vida só Deus a deve tirar...
E querem que eu acredite que o fim pode ser, realmente, pedido?
27. Eu preocupo-me muito com os animais, mas ser vegan não será um pouco exagerado?
Sou quando o prato me agrada, sem credos ou fundamentalismos.
28. Nasceu-te um filho. Não conhecerás, jamais, a extrema solidão da vida…’, versos de Jorge de Sena. Subscreve?
Não tenho filhos. Mas amo muitas crianças.
E sei que ser progenitor não é sinónimo de eterna companhia – anos num Tribunal da Família ditaram essa minha crença.
Como costumo dizer, cada autoridade só tem direito ao respeito que conquista.
29. Qual considera ser a sua maior conquista?
Na vida, e enquanto JUIZ da infância, o que mais me preencheu foi edificar projectos de vida de muitas crianças e jovens, em busca de melhores portos de abrigo.
Cada vez mais acredito na especialização temática que tende a ser uma realidade e uma necessidade no nosso futuro mundo jurídico (tenderá o juiz a cada vez MAIS conhecer de MENOS).
Contudo, a essência de um JUIZ, seja onde labore, tem de ser sempre a mesma.
É um saber fazer, um saber estar e, sobretudo, um saber ser.
Temos de nos reger pelo supremo princípio da plenitude da nossa consciência, não sendo os sinais exteriores de respeito, as cinzentas ou azuis gravatas, que legitimam a nossa acção (e se eles também interessam é porque existem exemplos de compostura pedagógica a seguir pois o povo em nome de quem exercemos a nossa missão isso espera de nós), mas aqueles que nos fazem convencer de que não é o magistrado de calças de ganga que temos de evitar mas o magistrado de cabeça de ganga.
Somos todos seres vulgares a exercer uma missão invulgar, cientes que devemos ficar de que só teremos direito ao respeito que formos capazes de conquistar com a excelência ética e científica da nossa prestação judiciária e comportamental.
No fundo, a melhor aprendizagem que tive nestes 33 anos de profissão foi o de tentar, a todo o custo, ser JUSTO e nessa decisão ficar de consciência tranquila.
Cientificámos, no meu CEJ, a Jurisdição da Família e das Crianças e exigimos dela o mesmo rigor jurídico das outras ditas rainhas (o Cível e o Penal), não nos podendo mais bastar com o bom senso como forma de encontrar solução para a vida das nossas crianças.
A preparação dos nossos magistrados nesta Área dos afectos e dos pudores tem de ser muito exigente e credível, apetrechando os auditores de justiça de ferramentas jurídicas e não jurídicas para melhor tratarem do caso do João e da Alice e das suas famílias.
Ninguém bate palmas com uma mão só e, por isso, para abarcarmos o universo complexo que é o Cidadão Criança – já não «menor», termo que não é senão uma ficção jurídica -, temos de saber muito de Direito – pois já não basta só o bom senso - e muito de outras ciências coadjuvantes que vão iluminar a decisão judiciária, numa óptica de interdisciplinaridade.
Sem imodéstias, sei que também contribuí para isso, praticando o pensamento do visionário Juiz Conselheiro, hoje jubilado, Armando Leandro.
30. O tribunal é um lugar de liberdade?
Talvez o maior.
Cedo fiz 3 descobertas sobre os tribunais e a judicatura:
a)- a forma como podemos mudar a vida de uma pessoa – isso é assustador e tão responsabilizante;
b)- a quantidade de possíveis respostas jurídicas para a pretensão de uma parte – e aí culpo a lei, tantas vezes, escusadamente aberta, vaga e imprecisa, a deixar o ónus da decisão na opção subjectiva do julgador;
c)- a solidão da decisão – era sempre o último a sair do tribunal, trabalhei horas a fio, em infindos fins-de- semana, aqui e ali preterindo a vida pessoal e familiar.
Mas fui livre. Como poucos. Fui sempre com as aves.
Mas sei também que o principal desafio de um juiz hoje em dia é aceitar que há uma quantidade enorme de pessoas que também o querem ser e que julgam na praça pública como se o fossem.
É uma actividade que deve ser escrutinada, como é óbvio.
Mas é insano ler o que vai escrevendo por aí sobre a Justiça.
Opina-se sem ter conhecimento de factos, crucifica-se gente sem dó nem piedade.
E isso dói pois na maioria das vezes a crítica é injusta e infundada porque infundamentada.
E sei que os meus colegas magistrados são livres e que a maioria deles se envolve na mais simples profundidade de todas as coisas, não tem medo da demência do dia-a-dia, e o que o que mais dele tira é o arrepio.
Conheço à fartura homens e mulheres que partem da descoberta nos olhos do outro, da descoberta pelos olhos do outro, através dos olhos do outro.
Conheço muitos colegas meus que sentem falta dos sinos a tocar, dos cortes das espadas com os dentes, das canções dos afogados e sem esperança, do som do tear, da sensação de deixar que tudo se pinte de cinzento até às onze e um quarto da manhã, do pó que recolheram com as mãos e que esfregam nas suas feridas e nos seus despachos.
31. Como se vê o mundo através de um tribunal da relação?
Com os olhos das águias.
Ainda a tempo de ver a activação como letra viva do disposto no artigo 67º, n.º 4 e 5 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), onde se estatui que «os Tribunais da Relação compreendem secções em (…) matéria de família e menores (…) e que a existência das secções (…) de família e menores (…) depende do volume ou da complexidade do serviço e a respetiva instalação depende de deliberação do Conselho Superior da Magistratura, sob proposta do presidente do respetivo tribunal da Relação».
Ora, não faria sentido a existência já hoje de Secções de Família e Crianças nos Tribunais da Relação do Porto e de Lisboa, os de maior pendência processual, a fim de evitar a perda, em 2ª instância, da mais-valia da especialização operada no tribunal de base?
Aguarde-se o impulso de quem de direito.
32. Qual o seu herói da ficção? Quem são os seus heróis da vida real?
Na ficção, tenho uma incomensurável admiração pelos dotes de inteligência dos detectives de Miss Agatha Christie – sou um fã desde tenra idade.
Quanto à vida real, os meus heróis são os valerosos marinheiros das nossas CPCJ, os incansáveis «trabalhadores da infância» que deixam as suas casas para ir cuidar dos filhos dos outros.
Porque eles são o sal da Terra, o verdadeiro pilar do sistema de protecção em Portugal, a norte das entidades de 1ª linha que, por qualquer razão, não puderam ou não quiseram intervir no caso do João e da Alice, a sul dos tribunais que apenas devem intervir em situações de conflito aberto.
33. Um comentário que não esquece
relativamente a "Como se não fossem pedras" e a "Guerra
Franca"?
Na «Guerra Franca», terem dito que não conseguiam distinguir os meus textos da prosa do Fernando Franco, meu fascinante co-autor (os contos eram corridos e escritos a 4 mãos).
No recente livro de poesia, ainda em fase de divulgação, o sentimento que entreguei no regaço de V.B. ao ler o excerto do meu poema «Colo»:
«E soube, logo ali,
que mesmo que o Tempo se esqueça de nós e nos separe,
em dolorosas despedidas,
ficarás sempre aqui para mim,
dentro de mim,
à espera de mim,
em sossego de mim…
34. Quais são os escritores preferidos do Paulo [incluindo os poetas, contistas, dramaturgos, letristas …]?
Decididamente:
Philip Roth, o meu eterno Nobel
Michael Cunningham
Pat Conroy
Herberto Helder
Maria do Rosário Pedreira
Chico Buarque de Hollanda
35. Um verso de que goste muito?
Dois:
De José Gomes Ferreira,
Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.
De Mia Couto,
Quem sabe de certezas
não é o poeta.
O mundo que é nosso
é sempre tão pequeno e tão infindo
que só cabe em olhar de menino.
36. Rezam as crónicas que sofre de uma doença chamada cinefilia.
Ainda assim, indique-me apenas um dos filmes da sua vida?
Sempre, MAGNÓLIA (1999), de Paul Thomas Anderson (onde os sapos tombam dos céus sem dó nem piedade)
37. Quem é o seu compositor preferido?
Em bandas sonoras: Ennio Morricone
No piano: Ludovico Einaudi e J.S.Bach
Na música cantada: Dulce Pontes (a maior Artista portuguesa da actualidade) e Elton John
38. Com quem dançaria até às 5 da madrugada?
Com a Constança, se os seus frágeis joelhos aguentassem.
39. “Embriagai-vos sem cessar! Com
vinho, poesia, virtude! Como quiserdes …!”’ [mais coisa, menos coisa], disse
Baudelaire. Paulo esqueça a poesia e a virtude e diga-me em que contexto
apanhou a sua maior bebedeira?
Nunca (e não estou a mentir).
Apenas, aqui e ali, a suave leveza do torpor de algum vinho a horas ou fora delas.
40. Consegue eleger o prato da sua vida?
Prosaicamente, um bom empadão de carne.
41. Qual é o seu maior
arrependimento?
Não ter sempre conseguido entender-me totalmente com o meu Pai, antes da sua doença, tentando ultrapassar a dificuldade de interacção entre dois feitios tão similares.
42. Qual o seu actual estado de espírito?
Em plena ressaca da pandemia e com muito medo do que aí vem.
43. Vasco Graça Moura em blues da morte e do amor escreve ‘[…] já ninguém morre de amor, eu uma vez andei lá perto, estive mesmo quase…’.
E o Paulo?
Morro todos os dias de amor pela Constança, mesmo quando brigamos.
44. Um poema que seja seu:
Querem-se as máscaras de pano por toda a face
Afogam-se todos os tactos em soluções de álcool
Descansam os apertos das mãos que já não se dão
A madrugada é anunciada por números negros
O entardecer já não pertence aos amantes
Chegou a peste aos solavancos
Nesta paleta de vendavais
Em que se sente o toque das medusas, das andrómedas e dos morcegos
Já não se cantam as avé-marias
Porque as bocas estão presas por outras luvas
Porque os mortos são levados à terra sem hinos ou elegias
Dizem que a final vai tudo ficar bem
Que as andorinhas vão regressar de locais inauditos
Onde aprenderam a canção das primaveras,
Um nome mais próprio para os próximos verões malditos
Já não sei da minha rua
Já só sei da janela do meu quarto
Onde os dias fogem às noites e as noites se molham de dia
Ufano, como se cumprisse uma promessa, uma espécie de adeus
Levanto o alçapão do meu medo e grito bem alto, para lá das quarentenas:
- a falta que me fazem os meus!
Feito em 1.4.2020, durante a via-sacra do confinamento pandémico)
45. Para fecharmos este questionário/entrevista que pergunta gostaria de me fazer?
PERGUNTA:
Sei que adopta a máxima de que «viver não é outra coisa além de arder em perguntas».
Luís, porque gosta mais de perguntas do que respostas?
Aquele abraço, Meritíssimo Paulo Guerra!
Luís Galego
10.08.2020
FOTO - pela sobrinha Carlota, em 2019, no
reino da Curia.
#pauloguerra #galegoarmadoemproust
▶ Entrevistas anteriores: (I) André Freire, (II) Eugénia Vasques, (III) João
Brás, (IV) Mamadou Mahmoud N'Dongo, (V) Noémia Costa, (VI) Rogério Pacheco,
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Pereira Rodrigues, (XXIV) Daniel Sampaio, (XXV) José Correia Guedes, (XXVI)
Dolores Parreira, (XXVII) Isac Graça, (XXVIII) Inês Thomas Almeida, (XXIX)
Maria Quintans, (XXX) André Maia, (XXXI) João Pedro Vala, (XXXII) Inês
Fontinha, (XXXIII) Matamba Joaquim, (XXXIV) Lurdes Feio, (XXXV) Martim Pedroso,
(XXXVI) Ana Salazar, (XXXVII) Rosa Vaz, (XXXVIII) Helena Coelho, (XXXIX) Mc
Somsen, (XL) Emília Ferreira, (XLI) Ângela Pinto, (XLII) Rui de Luna, (XLIII)
Estelle Valente, (XLIV) Isabel Mendes Ferreira, (XLV) Dalila Carmo, (XLVI)
André Osório, (XLVII) Isabel Medina, (XLVIII) João Pinto, (XLIX) Bruno Gomes
Gonçalves, (L) Paula Perfeito, (LI) Frederico Corado, (LII) Elmano Sancho,
(LIII) Ana Margarida de Carvalho, (LIV) Luís Reis, (LV) Lucinda Loureiro, (LVI)
Paulo Otero, (LVII) André Tecedeiro, (LVIII) Vera de Vilhena, (LIX) Tiago
Salazar, (LX) Cecília Carmo, (LXI) Carlos Prado, (LXII) Alberto Villar, (LXIII)
Olga Roriz, (LXIV) Itamar Vieira Junior, (LXV) São José Lapa, (LXVI) Fernando
Ventura, (LXVII) Fernando Ramos, (LXVIII) Manuel Halpern, (LXIX) Catarina
Figueiredo Cardoso, (LXX) Jacinta Jazz, (LXXI) Maurício Gomes, (LXXII) Joana
Emídio Marques, (LXXIII) Rita Ferro, (LXXIV) David Simões, (LXXV) Sílvia
Vasconcelos, (LXXVI) Cristina Vidal, (LXXVII) Rafeiro Perfumado, (LXXVIII)
Daniel Bernardes, (LXXVIX) Fernando Ferreira, (LXXX) Simão Rubim, (LXXXI) Luísa
Dulca Soares, (LXXXII) António Capelo, (LXXXIII) Ricardo Fonseca Mota, (LXXXIV)
João Neto, (LXXXV) Levi Martins, (LXXXVI) Tiago Guedes, (LXXXVII) Miguel-Manso,
(LXXXVIII) André Gago, (LXXXIX) Cecília Barreira, (XC) Rui Effe, (XCI) Analu
Prestes, (XCII) Isabel Rio Novo, (XCIII) Cristina Carvalho, (XCIV) Jorge Silva
Melo, (XCV) José Magalhães, (XCVI) Paulo Teixeira Pinto, (XCVII) Miguel Poiares
Maduro, (XCVIII) Tomás Kisseleca, (XCVIX) Pedro Penim, (C) Maria Eduarda
Colares, (CI) Eduardo Quive, (CII) Júlio Lellis, (CIII) Mafalda Ribeiro.
— (CIV) – Paulo Guerra
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