É a hora das cotovias.
E dos segr
edos.
Esta doença mata.
Mesmo.
Matou o meu colega de Curso António.
Matou uma minha vizinha de metros.
Matou mil e um desconhecidos que nunca pensaram que uma gripe pudesse ser assim letal.
Por causa dela andamos há uma no e pico a respirar por máscaras de pano por toda a face, andamos a afogar-nos em todos os tactos com soluções de álcool, andamos a descansar os apertos das mãos que já não se dão.
A madrugada é anunciada por números negros.
Chegou a peste aos solavancos nesta paleta de vendavais e de dias de sol como o de hoje onde, aparentemente, nada poderá ser doentio.
Sentem-se os toques das medusas, das andrómedas e dos morcegos e já não se cantam as avé-marias, porque as bocas estão presas por outras luvas e porque os mortos são levados à terra sem hinos ou elegias
Dizem que a final vai tudo ficar bem, que as andorinhas vão regressar de locais inauditos onde aprenderam a canção das primaveras, um nome mais próprio para os próximos verões malditos
Já não sei da minha rua, já só sei da janela do meu quarto onde os dias fogem às noites e as noites se molham de dia
Quando chegou a moléstia, nada deixaria adivinhar o que por aí vinha – a própria Saúde andava confusa com tanta comunicação contraditória e indecisa.
Mas chegou por um ano de dois vintes, onde nada foi igual ao passado e onde até se duvidava do futuro.
Por muito cuidados tidos, o vírus chegou a casa de muita gente.
Também à minha, num Janeiro doloroso.
Só me pegou a mim.
Ao de leve.
Quase como uma gripe frágil e escondida.
Mas temi por mim e pelos meus.
Desesperei enquanto não soube que a minha mãe, doente de risco, estava escalada para a vacina, protestei, lutei…
Cumpri as quarentenas, retemperei o fôlego de novos ânimos, espantei a angústia e a melancolia e fui salvo pelo Cinema e pela boa TV.
São sempre as Streisand e os Bogart que me salvam, não há nada a fazer.
Webinei às toneladas, desesperei com tantos microfones, ansiei por mil olhos presenciais e não só digitais e continuei sempre a trabalhar pela formação de magistrados em Portugal, tantas vezes à distância, mas sempre com o coração certo e a porta dele sempre aberta.
E temo ainda por tudo aquilo que por aí ainda virá.
Que mundo é este que entrego nas mãos dos meus amados 13 sobrinhos, ao sabor de uma partícula ínfima como o pó e que nos é capaz de matar?
Que esperar da impaciência de tanta gente que, confinada há meses, grita por uma réstia de ar livre, mesmo que sob a ameaça de uma coima?
Inconsciências vi muitas, sobretudo nas esplanadas da Praça da República nesta Coimbra.
Intolerâncias senti muitas, entre aqueles que teimam em teimar e em negar o óbvio – o bicho mata, sem apelo nem agravo, e não nos pergunta nem faz em nós o contraditório.
Ufano, como se cumprisse uma promessa, uma espécie de adeus, hoje levanto o alçapão do meu medo e grito bem alto, para lá das quarentenas:
- a falta que me fazem os meus!
*
Cuidem-se.
Não ouçam os loucos que se pensam sãos e que incitam as gentes ao impensável e ao insano.
Não temam o que a Ciência tem para nos oferecer.
Os riscos são tão mais elevados.
Que o diga o António.
Que o diga o Daniel.
Que o diga a Maria de Sousa.
Que o diga o meu Luís Sepúlveda.
Que o diga a Maria José Valério
Que o dia a Cecília de Guimarães.
Que o dia a Adelaide João.
Que o dia a cidadã x da minha rua de baixo.
Que o digam os 16 937 cidadãos portugueses que já morreram sem hinos, salmos ou dignas exéquias.
Sobrevivi a isto.
Está - quase – tudo na nossa mão.
Meu caro Daniel Sampaio, long life, e fico à espera de o ler…
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