DIAS PERFEITOS (OU FELIZES, a lembrar Beckett)
Este é o Homem.
Que me ensinou que as sombras sobrepostas são mais escuras.
Que o barulho do sol nas folhas cria cores diversas e nunca iguais.
Wim Wenders já tinha filmado Tóquio em 1982.
Voltou a esta sana Metrópole em 2023 para a filmar como poucos.
Como o fizeram Ozu e Sofia Coppola no lendário Lost in translation.
É ele feito de coisas simples, as que deixaram de ser complicadas pela repetição e pela essência de Ser.
Deixou o passado arrumado nos interstícios da história e rumou a uma cidadela plena de fumos, de sons e silêncios, de gentilezas e vénias, de cerejeiras rubras e brancas...
Ele chama-se Hirayama.
Wenders imaginou um homem que tivera um passado privilegiado e rico e que resvalara profundamente.
E que então, um dia, quando a sua vida estava no ponto mais baixo, tivera uma revelação, ao observar o reflexo das folhas criado pelo sol que brilhava milagrosamente no buraco do inferno em que ele estava a acordar.
Note-se que a língua japonesa tem um nome especial para essas aparições fugitivas que às vezes surgem do nada: komorebi, a dança das folhas ao vento, projectando-se como um jogo de sombras numa parede à sua frente, fruto de uma fonte de luz existente no universo, o sol.
Foi esse sinal que salvou este homem.
Tornou-se, enfim, o homem da limpeza de casa de banho super modernizadas, ele que nem sequer sabe o que é o SPOTIFY e um laser.
Só ouve cassetes antigas dos anos 60 e 70, resvalando em Otis Redding, Velvet Underground, Patti Smith, The Kinks ou Lou Reed, decorando de perfeição os seus dias.
Joga ao jogo do galo com um anónimo transeunte que lhe agradece o tempo que com ele passou, admoesta com o olhar e o rigor o seu preguiçoso colega Takashi, revê-se num sem-abrigo que vive num parque onde ele trabalha todos os dias, acolhe a sobrinha menina que se revê em Patrícia Highsmith ou em Faulkner, recebe um furtivo beijo de uma adolescente pós-moderna que nele vê a pureza dos tempos fáceis e genuínos, cumprimenta todos os dias uma sua vizinha de almoço no parque, conforta o ex-marido de «Mama», a dona do botequim das horas vagas e das folgas, ainda a tempo de o fazer esquecer o vil caranguejo que o consome.
Ele tem muito pouco de seu.
Uma velha máquina fotográfica (com a qual ele só fotografa árvores e komorebis, rasgando as fotos mal tiradas e guardando as sãs em arquivo móvel, etiquetado com marca do sonho), os seus livros de bolso e o seu velho gravador com a colecção de cassetes que guardou da juventude.
O filme retrata esta sua eterna rotina de dias e noites, quase iguais, tão diferentes.
Em Tóquio, coexistem tantos mundos - os arranha-céus feéricos, as pequenas casas de madeira, as torres sem fim, as trezentos e cinquenta formas de fazer chá verde.
Como alguém já o disse antes de mim, tudo e todas as pessoas são únicas, cada momento só acontece uma vez, e as histórias do quotidiano representam sempre histórias eternas.
Não é uma vida extraordinária?
Repetem-se demasiados rituais e gestos?
É na simplicidade que nos encontramos e na certeza do Infinito que nos resguardamos da angústia.
Como este homem BOM que só sabe sorrir. Que fala com os olhos, com a boca semi-aberta ou semi-fechada, conforme as entoações e os humores.
É verdade que nos ensinou Maya Angelou que, se estivermos sempre empenhados em ser normais, nunca saberemos o quão fantásticos que poderemos ser…
Mas, acreditem, é essa normalidade das coisas simples que nos trará a eternidade e um dia mais.
A ver.
Vezes sem conta.
Como os dias e as noites de Hirayama.
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