terça-feira, 7 de outubro de 2025

Os frutos da Magnólia



Todos os meus amigos sabem que eu venero Paul Thomas Anderson.
E que o filme da minha vida data de 1999 e dá pelo singelo nome de MAGNÓLIA.
Foi aí que fui buscar o título da minha primeira obra de poesia, foi aí que fui beber o título do meu blogue, A vida é uma magnólia.
muito escrevi sobre essa pérola cinematográfica que me fez irromper em palmas vibrantes (eu e os outros espectadores) numa sala escura do antigo Cinema Monumental, corria o dito ano de 1999, quando a película fecha ao som de Aimée Mann e de «Save me».
Porque aquilo que nós tínhamos acabado de presenciar tinha sido uma bíblia.
Repito: a única em que, no final da sua exibição, numa anónima sala em Lisboa, fora do trajecto de algum festival de cinema, toda a plateia irrompeu numa inaudita salva de palmas, difícil de ser calada.
Raros filmes me deixaram assim - com uma ponta de sol nos dedos, com uma melodia na alma, com o poder de ver um brilho especial no olhar dos outros - o tal inferno -, daqueles que me tocam todos os dias, que comigo privam, sem me tocarem, em todos os interstícios da existência, em qualquer esquina da grande cidade, em qualquer bar da última esperança, em qualquer beco de heróis e heroínas, em qualquer semafórico desespero citadino, em qualquer encontro de amantes em colchões de águas felizes.
Aquele polícia que vigiava a minha normalidade e o meu sossego não era igual àqueles que vejo pelas praças, o jovem sábio dos concursos, suado, não urinado, pedia uma chance de felicidade, disfarçada numa pergunta de enciclopédia, o vendedor frustrado, ex "little man tate", gritava aos ventos o seu afecto pelo jovem empregado de bar e que tem tanto amor para dar e ninguém que o queira receber, o símbolo sexual de que Cruise se vestiu esconde um passado de doença atrás de um manual azul e rosa que elege o sexo como arma, o pai incestuoso procurava, em fim de vida, a filha toxicodependente, como mais um desafio do concurso televisivo que apresenta, saturado, há 25 anos, o enfermeiro do magnata escolhia a melhor forma de dar vida à morte do cliente, o cliente sossegava a culpa de anos num instante com o filho pródigo, a mulher do cliente admitia um amor, fora de horas, com dias desencontrados e idades trocadas, ao som de soporíferos e calmantes capazes de lhe desculpar um casamento de conveniência.
Naquele dia choveu prata.
Em forma de bicho.
Acertaram-se contas passadas com os fantasmas de uma vida inteira, com os medos, com as outras noites mal dormidas e responsáveis por tanta errada opção de rumo...
«Tenho tanto amor para dar e não sei onde o colocar», dizia o Quiz Kid Donnie Smith.
É assim por tanto lado.
*
Magnólia é um filme difícil de resumir.
Não há maneira exacta para definir o que Paul Thomas Anderson quis dizer com ele.
Uma simples análise superficial é capaz de apontar inúmeras metáforas que permeiam o filme, nem sempre compreensíveis, nem sempre compreendidas.
O seu verdadeiro tema é o poder da culpa e do arrependimento na vida de pessoas comuns.
A corrosão da alma e a necessidade do perdão para algumas personagens é tanta, que a morte surge como único e tardio alívio.
Talvez isto explique a discutida cena final, pela qual até hoje Magnólia é lembrado, em que Paul Thomas Anderson, a partir de uma passagem bíblica contida no livro de Êxodo, impõe a todas as personagens, um psicadélico castigo dos deuses, procedendo à limpeza de todos os pecados e sugerindo, a final, a esperança na raça humana.
Naquele pedacinho de céu encontra-se a peça chave.
O indício básico, a grande simbologia metaforizada.
A simbologia precisa, a metáfora disfuncional, os diálogos humildes e realistas, o confronto com a verdade, a recaída, a superação, a vida, a morte, a dor, o sofrimento, a alegria, a hipocrisia, a letargia, a apatia, a entrega, a manipulação, a sujeira, a beleza, o lado humano, o lado animal, a razão, a dúvida, a dívida, o preço a ser pago e a... chuva de sapos.
Como uma longa avenida, ao som de Aimée Mann, onde circulam muitas vidas, pétalas diferentes e solitárias, mas que fazem parte do mesmo ciclo, estão interligadas para sempre, sendo essa a sua natureza, até que o acaso as venha a separar.
Tudo isso faz parte da mensagem de Magnólia.
O resto? Bem, o resto ainda não foi compreendido.
No fundo, talvez Anderson esteja certo e o passado nunca se esqueceu nem nunca se esquecerá de nós.
Como se ouve no filme, «tu podes romper com o passado mas o passado nunca romperá contigo» (e desde 31.5.2024 que eu e o João Pedro Gaspar temos andado a recuperar esta deixa para a nossa Campanha em forma de livro segundo a qual «tudo o que passa na infância não fica na infância»).
Tudo que podemos fazer é aprendermos com os erros e encararmos o devir com aquele subtil sorriso que encerra o filme.
Que mais queremos do cinema?
E não é a vida isso mesmo?
No fundo... constantes decepções e eternas redenções.
E por isso... ESTE é o filme da minha Vida, o filme que dá nome ao meu blogue, realizado que foi no ano do nascimento da Francisca, sabe-se lá porquê.
*
Vi tudo o que este génio fabricou na Sétima Arte.
Sempre maravilhado pela modernidade da sua lente, do seu discurso, pela ousadia dos seus temas.
E eis que estreia esta semana o seu «ONE BATTLE AFTER ANOTHER», ao que parece, o seu maior êxito de bilheteira e de crítica (vamos ouvir falar dele nos próximos OSCARES pois, para mim, este é já o MELHOR filme do ano).
Fala de política e de gente arruinada pelos seus sonhos de mudança do mundo através da violência.
Fala de uma América distópica mas tão presente nos interstícios da mente conturbada de Donald Trump, essa «coisa» que domina a Terra.
Há quem defina a obra como um épico político que se disfarça de thriller emocional - «mas o que realmente pulsa por baixo de toda a poeira, tiros e caos é uma história sobre amor, fracasso e redenção. É cinema em sua forma mais visceral, um grito em meio ao ruído do mundo moderno».
Adapta a obra “Vineland”, de Thomas Pynchon – o livro acompanha Zoyd Wheeler, um hippie que vive sozinho com a filha Prairie e que, inesperadamente, se vê envolvido numa missão perigosa ao ser recrutado para investigar criminosos.
Mas esta obra fílmica é muito mais do que isso.
Bob Ferguson não é um mero hippie.
Ele é a personificação de uma humanidade que acredita que pode mudar as gentes e as políticas através da confrontação e da insana violência, quantas vezes, com uma extrema leveza de ser, incapaz de calcular as consequências dos seus actos e o sangue que as suas utopias fazem escorrer, sem apelo nem agravo.
Será que os meios justificam sempre os fins?
Bob vive em fuga.
De si próprio.
Ligado a uma filha que lhe ficou agarrada ao corpo e à alma, abandonada por uma Mãe, maior do que a vida e que partiu para outros combates (Perfídia Beverly Hills é um nome fantástico, numa interpretação estrelar de Teyana Taylor).
Os primeiros 15 minutos do filme dizem tudo - com uma banda sonora espectacular (OSCAR na certa!), assinada por Jonny Greenwood, dos Radiohead, somos lançados para dentro de uma acção directa do grupo guerrilheiro French 75, que pretende libertar prisioneiros imigrantes de um campo de concentração nos EUA.
E aí tudo é CAOS, «vive la révolution!».
Uma filha é gerada, desconhecendo-se paternidades correcta e biologicamente comprovadas.
Porque na parentalidade, por vezes, a biologia é um mero detalhe.
O sangue não é uma sina para a vida e os colos que colam os cacos, quantas vezes, não são suportados pelo fatídico e sobrevalorizado DNA.
Bob ama Willa.
Willa ama Bob.
Andam fugidos, como se não houvesse amanhãs mas apenas promessas de retornos passados.
Ele pensa que ela não usa telemóvel.
Ela pensa que Bob já se conformou.
O passado regressa então na forma de um homem branco supremacista chamado Lockjaw, desejoso de perseguir a mancha possível de macular uma carreira na barbárie «trumpiana» (não é mas podia ser).
E a perseguição é impiedosa, por entre desertos e estradas sem fim (nunca o interior da América foi tão bem filmado, em cenas de perseguição automóvel completamente poéticas e vibrantes, numa ondulação de curvas e contracurvas capazes até de nos enjoar).
Ali tudo faz sentido – os emigrantes clandestinos que pedem uma chance de existência na terra das oportunidades, as conversas hilariantes ao telefone entre Bob e os operacionais da revolução, entre senhas esquecidas e roupões de trazer por casa…
Porque Bob passa o filme em roupão, como se nunca tivesse saído de casa.
Como se a ordem política e social da América e do Mundo mais não fosse do que o prolongamento dos esgares caseiros de um homem que, no final, testa o flash do seu novo telemóvel enquanto a filha sai de casa para salvar terceiros.
Os actores são os peões certos para esta saga.
Leonardo Di Caprio e Sean Penn merecem OSCARES por isto que aqui fizeram.
Benício Del Toro é quase um Di Caprio mais envelhecido, tais as afinidades físicas.
E o resto é o frémito de uma obra onde nunca ninguém está em silêncio, onde nunca se deixa de ouvir música, petardos, interjeições e blasfémias.
A fuga de DiCaprio e Infiniti – gigantesca actriz - perante a brutal força do exército pessoal de Sean Penn, obcecado com a sua inclusão num restrito grupo conspiracionista ao estilo Illuminati, vai passando pelas diversas ilhas de violência casual de hoje.
Li por aí:
«As famílias de migrantes enjaulados (“if you want to solve the world’s problems, start with migration”, diz Penn), a crueldade policial na eliminação de qualquer cheiro a subversão, a pureza racial como catalisador de sangue. Não há meios, apenas fins. Também por isto, Battle é facilmente o filme de Anderson que mais foco coloca nas suas sequências de acção, sobretudo perseguição e tiroteio. Contudo, é notório o cuidado que Anderson coloca na consistência formal destas construções. A sua câmara alterna entre o registo de guerrilha enquanto segue DiCaprio na noite de Baktan Cross, e a imersividade na busca do carro de Infiniti pelos altos e baixos da auto-estrada que resolve a trama».
É quase impossível fazer um filme mais perfeito.
Pode não ser amado por todos.
Mas É Cinema em estado puro.
Aqui exploram-se os falhanços da geração anterior, as promessas que ficaram por cumprir e as revoluções que ficaram por fazer, ante uma América de tendências fascizantes e cada vez mais declaradas, na realidade como no cinema.
Como escreveu André Antunes, «a dinâmica pai/filha do filme, além do óbvio apelo emocional, carrega então algo mais, uma semente política, utópica, uma chamada à ação para construir o futuro. Os pais falharam, mas talvez os filhos consigam. Têm tempo, até porque a batalha nunca acaba».
Depois de uma batalha virá sempre outra.
Na avenida das magnólias e dos sonhos perdidos.
SEMPRE NUMA SALA DE CINEMA E JAMAIS EM CASA.

Sem comentários: