segunda-feira, 17 de março de 2008

Marfim e ébano

(foto de Lino Matos)

Paulo atingia o meio século naquela noite solarenga em que conseguira reunir os seus três filhos no seu faustoso solar de Cascais.
Naquela sala, estavam alguns dos seus colegas de armas, solidários naquele capim africano, de uma Luanda plena de mil cuanzas. Recebia-os como se fossem irmãos. De um outro sangue. Mais verdadeiro.
Ao som da última badalada da meia-noite, ele recordou Flora, uma mestiça que conhecera na primavera das savanas e que amara no calor luxuriante dos trópicos. Na mesma noite em que o seu camarada João tombara morto na lama colonial de uma guerra que nem sempre entendera,Paulo soubera que havia um filho parido no ventre de Flora. Com medo da sua juventude, optara por esquecer essa negra impala e regressar ao continente.
Um neto ligou a televisão e logo se viram imagens de um Ministro da Justiça de Angola, discursando com a voz de fogo. A marca negra no topo da sobrancelha direita do palestrante, a mesma de todos os primogénitos da família de Paulo, não deixava margem para dúvidas. Nesse instante, viu Flora nos olhos daquele político e releu a antiga paixão.
Sem hesitar, Paulo tomou uma decisão.
Irrevogável.
Com o balanço das onças africanas, humedecendo o coração com o cacimbo do entardecer, fechou-se no quarto e telefonou para o seu advogado - era chegada a hora de mudar o seu testamento e deixar entrar mais uma ave de ébano na sua existência.
Por amor a Flora.
Para dar sentido a essa guerra...

8 comentários:

Guilherme Salem disse...

Linda fotografia. Bonito texto. Como cantava o outro..."se vivem em perfeita harmonia no teclado do meu piano, porque não nós ?"
E lá há algo mais bonito que ébano e marfim juntos...

Anónimo disse...

E...talvez...

Para tentar ser JUSTO com Flora e com aquele que trazia a sua marca na sobrancelha.
Para se penitenciar por ter privado este do "legado" de AMOR paterno a que naturalmente aspirava quando nasceu.
Para dar algum SENTIDO aquele acto vital que quisera esquecer.
Para de algum modo MERECER o amor que Flora lhe deu...
Para ser Homem, outra vez.

***

Obrigado por estarem aqui os três.
Bjs
F.S.

César Paulo Salema disse...

E obrigado por estares aí.

Guilherme Salem disse...

F.S. obrigado a ti. Volta sempre

Anónimo disse...

Lindo...e apaziguador para os que perseguem sempre aquele "querer intenso e profundo" e que acham que sem ele não há magnólias...
Bj.
C.

Anónimo disse...

Ah..
Aquele "querer intenso e profundo" tem direitos de autor: é de uma voz intensa chamada Chavela Vargas, que penso ser merecedora de divulgação aqui no vosso blogue (Chavela In Carnegie Hall).
a C., de há pouco.

Guilherme Salem disse...

C. prometo que iremos trazer a Chavela Vargas para cá. Obrigado.

César Paulo Salema disse...

A Chavela já cá chegou.
Ouve-la, C.?