sexta-feira, 18 de abril de 2008

Deixa-me partir




Mãe, eu quero ir-me embora
– a vida não é nada daquilo que disseste quando os meus seios começaram a crescer.
O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram
– se é que me deram flores, já não tenho a certeza,
mas tu deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora
– os meus sonhos estão cheios de pedras e de terra;
e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais que a escuridão por cima.
Ainda por cima, matei todos os sonhos que tiveste para mim
– tenho a casa vazia, deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora
– nenhum sorriso abre caminho no meu rosto
e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha,
mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique
– as lágrimas impedem-me de caminhar
e eu tenho de ir-me embora, tu sabes,
a tinta com que escrevo é o sangue de uma ferida
que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem nunca me amou
e perdi tudo, até o medo de morrer.
A esta hora as ruas estão desertas
e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse,
mas essa voz, tu sabes, não é a tua
– a última canção sobre o meu corpo já foi há muito tempo
e desde então os dias foram sempre tão compridos,
e o amor tão parco,
e a solidão tão grande,
e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã,
mas desta vez,
tu sabes,
não as verei murchar.


De "O Canto do Vento nos Ciprestes" - Maria do Rosário Pedreira

7 comentários:

Anónimo disse...

Mas quem é esta mulher que tão bem escreve e que nunca tinha ouvido falar?
É maravilhoso
Ada

Passiflora Maré disse...

Ada ou ALDA?????
Vá-lá desnuda-te ó admiradora secreta!!!!!

Passiflora Maré disse...

Fui ao supérfluo e esqueci-me do essencial, o texto é realmente belíssimo e de uma extrema sensibilidade.

Anónimo disse...

Sou Ada mesma. Detesto os "l".

Anónimo disse...

Além do dom e engenho para se escrever assim, com música ( ainda que insuportávelmente triste )é necessária muita coragem, muita dor e muita experiência para se falar assim desse acto que é, penso, o mais aboluto da vida humana...
Bj.
C.

R. disse...

Há horas assim... em que o sonho é partir, deixar de procurar o morno e doce eterno permanecer...
Há horas em que o futuro já nos sobra...
Há horas em que acreditamos que não vale a pena... a sério que acreditamos...

"Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas."

Mas depois há horas em que renascemos, palavras em que revigoramos e olhares em que nos encontramos... com a morna e doce vontade de permanecer... ali, eternamente!
Também há horas assim!

César Paulo Salema disse...

Maria do Rosário Pedreira, poeta maior, autora de livros juvenis (o Clube das Chhaves saiu da sua imaginação) e que escreve poesia nas horas vagas e com a subtileza dos deuses e dos desencantados....