quarta-feira, 23 de abril de 2008

Tomás e Laura


Caía a noite no Guincho.
À hora marcada, Tomás compareceu no lugar combinado, dizendo nos Plátanos que o cinema esperava por si.
E lá serviu um vinho da Toscânia e verteu-o nos cálices de um cristal encantado guardado na memória destes incautos amantes.
Não se via vivalma nas ruas da cidadela e eles apenas tinham como companhia as mudas pedras das calçadas e dos vetustos edifícios e um vento inesquecível capaz de trazer aromas e notícias de outras paixões.
Os canais da urbe serviam de cenário idílico para este jantar, dando o tom musical para esta valsa dançada por tanto amor e com a garra insuspeita das garças coloridas que emergiam do interior deste homem e desta mulher.
Ele sentou-se à mesa, com uma delicadeza inusitada. Ela já ali tinha colocado a massa especial capaz de coroar este momento - uma massa cozinhada, em lume de eterna chama, com espinafres de um verde de hera de italianas paragens.
Laura dizia-se boa cozinheira. Como aperitivo, resolveu revelar-lhe como cozinhara aquela massa. Aos amantes, tudo se conta, até as traições.
Para os confeccionar, ela principiara por levar ao lume um tacho com bastante água temperada com sal e, quando esta levantou fervura, introduziu seis cannelloni, deixando-os cozer durante 15 minutos, não mais para não quebrarem.
Retirou os cannelloni e passou-os, com volúpia, por água fria. Escolheu, com critério e com o coração, os espinafres e lavou-os em água fria corrente, misturada com as suas lágrimas de alegria que caíam sem aviso. Cozeu-os em pouca água temperada com sal durante 10 minutos, escorreu-os no término da cozedura, espremeu-os e picou-os com todo o carinho do mundo.
Após derreteu poucas lágrimas de margarina e polvilhou outro tanto de farinha; quando à superfície apareceu uma espuma esbranquiçada, regou com gotas de leite e deixou ferver, mexendo sempre, com toda a paciência e até engrossar. Temperou com sal, pimenta e noz moscada. Paulatinamente. Serenamente.
Já fora do lume, ela incorporou no molho a carne cozinhada e os espinafres, aí rectificando os temperos com a alma na mão.
Deitou, então, o recheio dentro de um saco pasteleiro munido de um bico e recheou os cannelloni, colocando-os lado a lado num tabuleiro untado com margarina.
Tudo isto enquanto as cotovias prosseguiam o seu encantado cântico noctívago.
Cobriu os cannelloni com um molho de tomate previamente confeccionado, polvilhou com queijo ralado e levou a forno médio durante o resto do tempo do mundo, aquele que sobrava de tanta impaciência, durante os quais se foi maquilhando com as cores do jurista pintor.
Estava chegada a hora de servir esta receita. Feita com os cheiros dos amores-perfeitos que despontavam do seu coração. E daquele mar sossegado e cúmplice que testemunhava este encontro.
Em surdina.
Sem burburinho.
Em tom de quieta maré.
Eles, já sentados na mesa feita da pedra daquela praia que os albergava, olharam-se olhos nos olhos e soltaram um beijo perfumado, envolvido na brisa desta noite.
No ar, ouviu-se o som de um violoncelo.
Beberam um outro vinho, desta vez napolitano, tinto de morrer, e começaram a tragar aquela massa feita com a paixão dos bons momentos, com o ouro das pétalas de esperança que cresciam nos doces e quentes caracóis de um e de outro.
Nessa altura, ele deu-lhe um nome. Próprio. Só dela. Soube-lhe, então, os sinais particulares, os gestos, a língua. Só de lhe olhar nas íris, só de lhe sentir o cheiro, só de lhe provar o tempero.
Como resposta, ela acariciou-lhe os cabelos e sussurrou o nome dele.
Ao acaso.
Como uma balada.
- Não me deixes deixar-te, Tomás!
E enquanto a massa ainda esfriava no prato dele, este homem disse-lhe com o pincel na voz.
- Nunca, Laura, meu amor!

11 comentários:

Passiflora Maré disse...

César Paulo, o texto é muito belo, e de uma sensibilidade "quase" feminina.
Gostava de tê-lo escrito.
Parabéns.
Uum bj.

César Paulo Salema disse...

Um dia, Maré, me explicarás o que é isso de sensibilidade feminina e mesculina...
No fundo, a questão é de saber se há uma escrita feminina e outra masculina...

Passiflora Maré disse...

Oh grandes filósofos,Wittgenstein, Popper, Lorenz, Althusser, etc., ajudem-me e iluminem-me, porque mais tarde ou mais cedo terei de explicar-me.
Eles diriam só a linguagem é real.
Eu diria a tua pergunta já diz muito da tua sensibilidade e a minha afirmação e tentativa de resposta, diz da minha.

Anónimo disse...

«É possível conhecer a Outra Parte pelo brilho dos olhos - assim, desde o início dos tempos, as pessoas reconhecem o seu verdadeiro Amor.»
Paulo Coelho

Eu

Anónimo disse...

"Eu", com o tempo venho ganhando grande respeito por ti.
Mas confesso que acho o Paulo Coelho tão glico-doce, sempre tão igual e previsível, sempre tão ao gosto do pseudo místico, que às vezes fico com dúvidas sobre o teu bom gosto.
Dele apenas li o Rio Piedra, e sempre que folheei os outros livros dele, e deles li algumas pequenas partes, tive sempre a sensação desagradável de ele ter dito tudo no único livro que eu já havia lido.
O Eu do Espelho, com muito respeito.

Anónimo disse...

Lindo o texto!
Concordo com a Maré quanto à enorme sensibilidade (não sei se é masculina ou feminina).
Lindo, também, o gemido do violoncelo que se ouvia!
Intrigantes as nuvens negras...
Um bj
F.S.

Anónimo disse...

É linda a história de paixão deles, é lindo o texto, é linda a Itália presente e palpita-me que te tornaste um lindo e esmerado cozinheiro ...
Bj.
C. (EN)

César Paulo Salema disse...

F.S., minha amiga maior que a vida:
As nuvens negras só significam isto - apesar do mau tempo no canal, o Tomás nunca deixará a Laura! E vice-versa.

Anónimo disse...

EScreve tão bem, C.
Publique por favor, ok?

Anónimo disse...

Magnífica prosa poética.
Um gosto ler-te sempre.
Alguém que tu sabes quem sou

Anónimo disse...

«Eu do Espelho», devo confessar que, também para mim, Paulo Coelho é na verdade previsível e, embora possa não parecer, nem sequer é o meu autor preferido.
Mas há alturas nesta agitada vida em que me faz bem ler algo previsível...
Por isso, em determinadas fases do meu estado de espírito, aqui o tenho usado como meu «porta voz».
Quanto ao mais, gostos são... simplesmente gostos...
Em todo o caso, obrigada pelo respeito demonstrado.
Um dia me dirás porque és o meu Espelho.

Com toda a consideração, Eu