sábado, 31 de maio de 2008

Sunset



- Fala mais alto.
- Não quero.

- Fala mais alto. Quero sentir-te.
- Não posso. Não quero.

- Quando falas baixo, sinto-me encurralada.
- Porquê?

- Porque começo a sentir-te mais do que desejaria.
- Quanto mais?

- Fala mais alto, por favor.
- Quanto?

- Metade deste oceano.
- Tu é que quiseste ficar.

- Tu quiseste partir.
- Sim.

- Sim, o quê?
- Sim, eu quis partir.

- Que horas são aí?
- Quase nove.

- É noite?
- Quase.

- Diz-me o que vês da tua janela?
- não estou à janela.

- Diz-me o que vês.
- A minha mesa.

- É castanha?
- De vidro. Com pés castanhos. Em madeira.

- Diz-me o que está em cima da mesa.
- Um copo. Com água. Um cinzeiro. A tua carta
que chegou ontem. A nossa fotografia do meu
último dia em Paris. Que horas são aí?

- Seis. Seis da manhã.
- O envelope da carta. Com a tinta borrada pela
base do copo. O «Los Angeles Times» de ontem.
Não, de anteotem. Uma revista. As chaves do carro.

- Que revista?
- Um catálogo de telemóveis.

- Que revista?
- Uma embalagem de batatas fritas por abrir. Ou-
tra embalagem, igual aberta.Um CD das Hole.
Dois CDs da Von Otter. A caixa de singles do
Eminem.

- Que revista?
- Playboy.

- São mais belas do que eu?
- Não.

- Mas estás com elas?
- E tu com quem estás?

- Com o cão.
- Já lhe deste um nome?

- Porqe és tão obcecado com os nomes?
- Porque sem eles o mundo não faz sentido.

- Ou tu não lhe encontras sentido?
- Não é a mesma coisa?

- Diz o meu nome.
- E um bloco de apontamentos aberto numa página
onde está escrito: "desde que cheguei falei
com cinco pessoas, aliás quatro: A empregada
da agência imobiliária; a miúda da caixa do
supermercado(esta conta a dobrar porque já
lá fui duas vezes; homem do apartamento do
lado que acha que eu sou brasileiro e diz
hello, samba; e a vendedora de bilhetes do ci-
nema onde fui ver uma reposição do Red River.
The Last Picture Show."

- Diz o meu nome.
- É o que está aqui no fim da carta.

- Tens medo de dizer o meu nome. Tens medo que
o nome apague o oceano. De repente, posso es-
tar na mesma terra que tu e procurar-te. As-
sombrar-te.
- Eu não fugi por medo de ti.
- Mas fugiste.
- Fugi da tua terra. Não fugi de ti.

- Eu sou a minha terra.
- Eu sou da terra onde estou.

- Pensei que eu era a tua terra.
- Pensei que a terra não pertence a ninguém. A
terra a quem a trabalha é, no fundo, uma ou-
tra maneira de perpetuar a servidão. Foi o que
me disseste, uma vez.

- A terra deixa-se possuir. Às vezes. Quando
partes, nem sempre vais em safaris, pois não?
- O quê?

- Ah, falhaste a citação.
- Merda, falhei mesmo. Pede desculpa à Meryl
Streep. Ou peço eu. As luzes de Sunset Boule-
vard estão acesas, lá ao fundo. Vinte quiló-
metros ao fundo.

- Já não estás a olhar para a mesa?
- Não. E tu já não estás na cama?

- Estou a ver os telhados e as chaminés.
- As nuvens estão avermelhadas. O calor vai con-
tinuar. Nunca vai acabar. Agora a minha terra
é esta.

- Quem está a passar lá ao fundo?
- O fantasma do Cary Grant. O descapotável de
james Dean. Um holograma do Gene kelly e da
Cyd Charisse. Ah, como se chamava o filme?

- Brigadoon.
- Porque é que nunca me lembro do nome?

- Porque o vimos no dia em que fiz 29 anos.
Deste-me a mão no princípio e, a certa altura,
segredaste-me que não suportarias tanta har-
monia. Eu senti-me tão magoada. E Disse-to.
- Não tinha razão?

- Não. Mesmo que tivesses. Saímos do cinema zan
gados.
- Desculpa.

- Caminhando lado a lado, os ombros raspando um
no outro, eu a acender um cigarro contra o
vento, tu a olhares para os passos de uma es-
pectadora, à nossa frente, com uma saia preta
plissada e uns sapatos rosa-salmão.
- Desculpa.

- Lembras-te de quando fizeste 29 anos?
- Parece o princípio de um dos teus poemas. Fa-
zem-me falta os teus poemas.

- Na América não há poemas?
- Diz-me um que seja europeu.

- Agora?
- Agora. Inventa-o.

- Começa como?
- O meu sol esconde-se.

- O meu sol esconde-se/ Na linha da tua monta-
nha./Esta nuvem já passou por ti/ Pela pai-
sagem que tu escreves / No mar branco dos meus
olhos./ Quando voltares traz / Uma caixa de
areia / E um pensamento de sal.
- Desculpa.

- Vou-me embora. Diz-me um poema para eu desligar.
- Começa como?

- Não sei.
- Diz.

- Fala mais alto. Não sei. Don't call the tiger.
- Don't call the tiger / Say something to the
last cloud / Going through the evening. /Say
the words of the forgotten song / Coming from
the desert / Thinking another thought of rain.
/I own this land / The sun told me so / And
went looking for you. / Be kind to the light
/Close your eyes but be kind.

- Sim.
- Fala mais alto.

- Lembras-te do telhado com a janela de corti-
nas azuis?
- E do gato.

- O gato está à janela.
- Sou eu.

- Diz o meu nome.
- Desliga quando eu o disser.

Texto de João Lopes.

3 comentários:

Anónimo disse...

Esse diálogo é belíssimo.
As intermitências e cumplicidades do amor nele implícitas são muito imaginativas!
O Eu do Espelho.

Anónimo disse...

Gosto destes diálogos de amores mal assumidos que infatizam a sua intelectualidade, para não terem de assumir a sua condição (inferior, do seu ponto de vista) de apaixonados.
Bêja

Anónimo disse...

Subscrevo inteiramente comemtário do «Eu do Espelho».

Eu