quarta-feira, 28 de maio de 2008

De olhos postos no Céu



O Universo visto pelo telescópio Hubble.
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Estou, nesta noite cálida, deliciadamene estendido
sobre a relva,
de olhos postos no Céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

O que me perturba é que o todo posssa caber na parte,
que o tridimensional caibba no adimensional, e não
o esgote.
O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo,
E em mim continuaria a caber se me cortassem
braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.

Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam
no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que
caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos
oceanos que engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das
geleiras que galgaram sobre a Terra.

Mas não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me
apagavam a luz;
guardei a memória da fome,
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar
qundo cheguei ao mundo;
guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas
as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e
do distante;
guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os
tempos,
em que assisti, disperso, fragmenado, pulverizado,
à formação do Universo.

Tudo se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne não foram
fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam
Estão.
E estarão.


António Gedeão Poema da Eterna presença Poemas Póstumos

6 comentários:

Anabela Magalhães disse...

Lindo. Emocionante. Para voltar aqui e reler ainda com mais calma...

Elsa C. disse...

Passiflora:

Passeei pelo blogue e, devo dizer, que fiquei arrebatada com a selecção e qualidade dos textos. Não saberia qual comentar: gosto de Neruda, José Régio, Baudelaire...
E as imagens?
Belíssimas.
Admiro quem constrói com qualidade e sensibilidade.
Voltarei. As viagens, transfiguradoras e purificadoras da alma, exigem-no.

Passiflora Maré disse...

Obrigado Elsa e Anabela, pela cumplicidade.

Anónimo disse...

Obrigada PM, por nos apresentares textos com tanta qualidade.
Bj.
Ti...A

Anabela Magalhães disse...

Engraçado... e assim se vão costruindo teias blogosféricas!!
:)

Anabela Magalhães disse...

Ah, eu disse que voltava.