«O sargento cuspiu a palavra e, fiel ao seu estilo conciso, memorioso, começou a falar, catarticamente, sem pressas, eclipsando o presente e arrastando também Arturo para fora do tempo, para um lugar desvairado, uma minúscula parte do seu interior onde a sexualidade, a fome, o desejo... tudo fora abolido, e se projectava, hora após hora, a selvagem violação da sua mulher. "Procure uma paixão", recordou Arturo,"porque uma paixão é sempre uma razão, e que paixão mais poderosa que o ódio"..., "alguém enclausurado num passado auto-suficiente, condenado à repetição eterna do seu ciclo-obsessão"...,"um não-morto"..."um não-vivo". Um vampiro. Quando Cecilio Estrada parou de falar, Arturo sentiu-se estranhamente reconfortado, porque, apesar dos seus crimes, estes eram mensuráveis, tinham uma razão de ser; a outra coisa, o vazio, o absurdo, o horror, os imperadores estranhos, Molewo, causava-lhe um pavor infinito. Deixou que o sargento regressasse pouco a pouco do seu terrível abismo. Seguindo o seu rasto de pecados, apercebeu-se de que tal acumulação de impureza deixava Cecílio paradoxalmente puro, liberto de todo o pecado. E o ódio que Arturo tinha sentido em relação a ele foi-se tornando cada vez mais fraco e esbatido, já não lhe turvava o sangue. Contudo, algumas perguntas cintilavam ainda na sua memória.
- "Mira que te mira Dios"...-, recordou Arturo, enquanto guardava a Tokarev no coldre -, não percebo onde encaixava isto nos rituais.
- "Mira que te mira Dios, mira que te está mirando, mira que te hás de morir, mira que no sabes quando"- completou Cecilio,- Teresa repetia a quadra uma e outra vez, uma e outra vez, como uma criança, enquanto a espancavam, enquanto aqueles animais... -abanou a cabeça em sinal de negação. - Queria que jamais o esquecessem. Entalhei-lhes a frase a todos antes de os matar. »
Trecho do Livro "O Tempo dos Imperadores Estranhos" de Ignacio del Valle
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