segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O Lusco-fusco da madrugada.



Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos. É o último segundo em que a profundidade e a altura, a luz e a escuridão, tanto universal como humana, ainda se tocam, em que os que dormem despertam em sobressalto dos seus sonhos pesados e angustiantes, os doentes suspriam de alívio, porque sentem que o inferno da noite acabou e dará lugar a um sofrimento mais ordenado; a luz e a regularidade do dia revela e separa tudo que no caos obscuro da noite era um desejo convulsivo, uma ansiedade secreta, uma paixão delirante. Os caçadores e os animais selvagens gostam desse momento. Já não é noite, mais ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos. Levanta-se o vento tão suavemente, como quando alguém acorda e solta um suspiro, recordando-se do mundo em que tinha nascido. (...)
A esta hora, os animais selvagens dirigem-se para as fontes. A noite ainda não acabou de todo, na floresta acontecem coisas, a caça grande e a vigilância que preenche a vida dos animais selvagens, ainda não terminou, o gato-bravo está alerta, o urso devora o último pedaço da sua presa, o veado em cio recorda-se dos momentos da paixão da noite de lua, pára no meio da clareira, onde o duelo do amor decorreu, orgulhoso e encharcado, levanta a cabeça ferida na luta e olha em redor, com olhos sérios e tristes, avermelhados de excitação, como quem se lembra para sempre da paixão. (...)
É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O Sonho, o desejo, a vaidade, o egoismo, a ira, lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formamos e domesticámos em vão durante anos, às vezes, durante muito tempo....
Trecho da obra de Sándor Márai, "As velas ardem até ao fim".

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