segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O menino desassossegado


O menino dormia.
Franzino.
Desassossegado.

Sonhava que pintava.
Um homem, de corpo em forma de barco
E a cabeça à solta, como um pássaro
Podia voar
Através do mar.
E quando cansava,
Voltava
Poisava no corpo barco,
Aconchegava-se,
Reunia-se
Sossegava.

E de novo o menino se agitava
E sonhava que pintava.
Um homem com várias cabeças
Que apareciam consoante as emoções.
Uma
Envergonhada
Enterrava-se por dentro dos ombros
Espetava o cabelo no ar,
Vermelho,
E os olhos iam abrir-se no peito.
Outra
Enrolava-se num corpo roldana
Movia-se em todas as direcções,
Ganhava distância como um vento
E, por vezes, arremessava
Encolerizada contra o inferno…

E o menino agitava-se, de novo,
Recompunha-se,
E sonhava que pintava
Homem ou Mulher.
No lugar das mãos
Archotes em fogo
E rodopiava
Rodopiava
Incendiando tudo à sua volta.
Por vezes, o fogo queimava
Outras, afagava…

De repente
O céu ficou parado
Fez-se chumbo,
Verde chumbo,
Com ameaças de roxo e vermelho.
Animais de terra
Petrificaram as expressões
E soltaram rugidos escandalosos.
Pesados corvos de aço
Sobrevoaram os céus
E lançaram à terra
Pinhas de minério em fogo.
Os touros altivos trocaram de cabeça com deuses.
Os gatos obscuros misturaram os disfarces com os touros.
Os relinchos dos cavalos desenharam-se em pedras dentes.
Um braço de homem quis alumiar uma mulher
E uma criança
Estendeu-lhes uma nuvem de pensamentos…
Os homens impotentes soltaram gritos,
Que estilhaçaram séculos.

E o menino acordou
Franzino
Desassossegado
O corpo num tinteiro
E dizia tremendo
erniGucaGucaneriinarGuecGuernica.

(Nota: Em 1 de Setembro de 1939 a Alemanha invadiu a Polónia,
dando início à Segunda Guerra Mundial.
O Bombardeamento de Guernica durante a guerra civil espanhola
é vista em termos de estartégia alemã, nas ambições futuras
de Hitler, como um teste ao poderia aéreo da Alemanha.)

2 comentários:

Anabela Magalhães disse...

E jamais pintor algum chegou ao nível deste Picasso ao mostrar através da pintura a dor, a mutilação, a morte, o desvario, a loucura dos homens em guerra.
Tristes acontecimentos que eu passei as férias a recordar. Chegarei aos campos de concentração, mas não para já. Não aguentaria. A dor e o "incómodo" que ela arrasta devem ser doseados a bem da nossa sanidade mental.
Bonitas e sábias palavras as suas, Passi.
Bjs

PB Pereira disse...

Belíssimo texto numa data triste para um mundo que está permanentemente a brincar com os limites arriscando um regresso a esse passado que queremos esquecer. Mas os sinais bélicos dos senhores da guerra ouvem-se ao longe...
Trabalhemos todos para o futuro das nossas crianças