«Sinto pena dele - admite o Português.
- Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
- Puta de vida - diz -, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido - e conclui, após recuperar o fôlego:- O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. o aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
- Depende - Responde o Português.
- O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
- Sim.
- Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
- Me receite um remédio para eu desmaiar.
O Português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
- Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior
que fomos perdendo á medida que o mundo foi deixando de ser nosso.»
Mia Couto
Venenos De Deus Remédios Do Diabo
8 comentários:
maravilhoso... será que os livros que são lidos pelos nossos amigos,já não precisamos de os ler?...
:-?
Seria giro, desde que após a leitura se fizessem uma tertúlias para discussão.
Mas, mesmo assim, penso que seriam mais interessantes as tertúlias se todos tivessem lido os livros e se debatessem as possíveis interpretações.
* *
*
:):)
Eis um livro que me remete para uma experiência ímpar. Passarei a descrevê-la: no dia do lançamento desta obra estive na Câmara de Paredes a ouvir o seu autor.
O problema dos lançamentos é que o autor, frequentemente se depara com uma plateia que, por motivos óbvios, desconhece o conteúdo da obra.
Como faço, por prazer, alguns trabalhinhos de casa, consegui adquirir a obra na semana anterior. Li-a, reli-a, saboreei-a e comentei-a.
No distinto salão nobre, onde ocorreu o evento, quis intervir para falar da obra e, num ápice, estava sentada numa Excelentíssima poltrona, ladeada por Mia Couto, o seu primo e o seu editor. Falei. E todos sugaram as palavras. No final, Mia Couto estava emocionado. Perguntou-me a profissão. Pediu-me as minhas notas manuscritas e ofereceu-me o seu e-mail. Não esquecerei o ar de espanto, de enternecimento e, sobretudo, o privilégio em ter tido como ouvinte o protagonista da noite.
Escolha bonita, esta de um escritor desmesuradamente encantatório.
Gosto especialmente daquele pedacinho da vontade de ilucidez intermitente, com pausa na obrigação de existir...é uma melancolia tão recorrente e com tantas recidivas..
Bj.
C(EN)
O riso é também arte, porque partilha...a gargalhada liberta... e um sorriso franco alegra qualquer alma...
um verdadeiro ice breaker!
Parabéns pelas escolhas que denotam muita sensibilidade e sapiência... Parabéns pelos comentários ailleurs que demonstram a capacidade de rir e sorrir tb.
Abraço
As tertúlias seriam welcome!
Só agora aqui cheguei e só agora li esta tua experiência e tanto, Elsa, com Mia Couto.
Gosto particularmente da sua escrita e jamais esquecerei as gargalhadas sonoras que dei numas férias, em boa hora acompanhada de "O Último Voo do Flamingo."
Obrigada a todos, em especial no dia de hoje à Laurita, que é a primeira vez que recebo neste local de empatias, Risos e reflexões.
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