segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O Riso


«Sinto pena dele - admite o Português.
- Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu.
Ri-se para reafirmar o desprezo. E logo lhe sobrevém um ataque de tosse que o deixa sem respirar.
- Puta de vida - diz -, não vivemos se não nos rimos e depois morremos por nos termos rido - e conclui, após recuperar o fôlego:- O Doutor acha que sou uma anormalidade?
O médico olha para o parapeito e estremece de ver tão frágil, tão transitório aquele que é o seu único amigo em Vila Cacimba. o aro da janela surge como uma moldura da derradeira fotografia desse teimoso mecânico reformado.
- Posso fazer-lhe uma pergunta íntima?
- Depende - Responde o Português.
- O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor?
- Sim.
- Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar.
O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteira da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos.
- Me receite um remédio para eu desmaiar.
O Português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir.
- Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre.
Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior
que fomos perdendo á medida que o mundo foi deixando de ser nosso.»

Mia Couto
Venenos De Deus Remédios Do Diabo

8 comentários:

CLAP!CLAP!CLAP! disse...

maravilhoso... será que os livros que são lidos pelos nossos amigos,já não precisamos de os ler?...
:-?

Passiflora Maré disse...

Seria giro, desde que após a leitura se fizessem uma tertúlias para discussão.
Mas, mesmo assim, penso que seriam mais interessantes as tertúlias se todos tivessem lido os livros e se debatessem as possíveis interpretações.
* *
*
:):)

Elsa C. disse...

Eis um livro que me remete para uma experiência ímpar. Passarei a descrevê-la: no dia do lançamento desta obra estive na Câmara de Paredes a ouvir o seu autor.
O problema dos lançamentos é que o autor, frequentemente se depara com uma plateia que, por motivos óbvios, desconhece o conteúdo da obra.
Como faço, por prazer, alguns trabalhinhos de casa, consegui adquirir a obra na semana anterior. Li-a, reli-a, saboreei-a e comentei-a.
No distinto salão nobre, onde ocorreu o evento, quis intervir para falar da obra e, num ápice, estava sentada numa Excelentíssima poltrona, ladeada por Mia Couto, o seu primo e o seu editor. Falei. E todos sugaram as palavras. No final, Mia Couto estava emocionado. Perguntou-me a profissão. Pediu-me as minhas notas manuscritas e ofereceu-me o seu e-mail. Não esquecerei o ar de espanto, de enternecimento e, sobretudo, o privilégio em ter tido como ouvinte o protagonista da noite.

Anónimo disse...

Escolha bonita, esta de um escritor desmesuradamente encantatório.
Gosto especialmente daquele pedacinho da vontade de ilucidez intermitente, com pausa na obrigação de existir...é uma melancolia tão recorrente e com tantas recidivas..


Bj.
C(EN)

laurita disse...

O riso é também arte, porque partilha...a gargalhada liberta... e um sorriso franco alegra qualquer alma...
um verdadeiro ice breaker!

Parabéns pelas escolhas que denotam muita sensibilidade e sapiência... Parabéns pelos comentários ailleurs que demonstram a capacidade de rir e sorrir tb.
Abraço

laurita disse...

As tertúlias seriam welcome!

Anabela Magalhães disse...

Só agora aqui cheguei e só agora li esta tua experiência e tanto, Elsa, com Mia Couto.
Gosto particularmente da sua escrita e jamais esquecerei as gargalhadas sonoras que dei numas férias, em boa hora acompanhada de "O Último Voo do Flamingo."

Passiflora Maré disse...

Obrigada a todos, em especial no dia de hoje à Laurita, que é a primeira vez que recebo neste local de empatias, Risos e reflexões.