terça-feira, 18 de novembro de 2008

O ladrão das penas



(...)

Chegado ao destino (como se o destino tivesse endereço!), pagou a corrida com uma nota de cinquenta euros, recebeu o troco com um ar abstracto, pegou na mala castanha e na chave de casa e respirou fundo.
A vida ia voltar à sua morna normalidade.
Sem mais sobressaltos.
Com Laura colocada numa gaveta de ternura, à qual voltaria sempre que precisasse de uma dose de fôlego.
Viveria apenas com a promessa de uma conta corrente, em tom de deve e haver, pronto a tudo exorcizar, em nome de um Amor maior, despido de ficção e de ímpetos romanescos.
O amor é isso, esse pequeno nada, capaz de tanto e de tão pouca coisa, soletrado pelos filhos da Terra, umas vezes em registo de tragédia, outras vezes em cores de drama, a maioria das vezes em passos de comédia…
Meteu a chave na porta e entrou na sua casa.
E na de Clara.
Esta apareceu-lhe repentinamente, como se o esperasse, como se não tivesse feito mais nada do que o esperar, qual náufraga daqueles três dias de conformada incompletude, relativamente aos quais nada se pode ou deve perguntar, em nome de um espaço de individualidade que os casamentos modernos consentem ou ratificam.
E o abraço em que Tomás envolveu Clara correu o mundo mas não foi capa de revista ou notícia de jornal.
A vida deles tinha acontecido na véspera do dia seguinte.
Um beijo selou o regresso daquele homem, sem mais penas para cumprir.
Para aquela mulher.
Ele estava perdido e encontrou-se.
Aquele beijo estava perdido e encontrou-se…
O passado já havia transitado em julgado.
E o próprio Tomás assinou a correição!


"O ladrão das penas" , in A Contos com a Justiça, Coimbra Editora, 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bom.
Mesmo...
Um crítico literário