segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Os Disfarces de Arlequim


(...)
Atrás de Simone, irrompia a tristeza incontrolada de Florbela. Como sempre, de preto vestida.
- Maria, tens perante ti quatro seres, quatro imagens, duas reais mas fora do seu tempo, uma real e no seu tempo e uma imaginada. Daqui a uns quatro anos, muito irás ouvir falar desta borboleta esvoaçante chamada Isadora. Ela é do teu tempo. Treze anos tem neste momento. Quanto a Scarlett, essa tem a sua existência limitada e quinhentas e tal páginas de um livro que será escrito no futuro sobre um tema passado. Não tem princípio nem fim o ilimitado!
- "Para falar com franqueza, minha querida, quero que vás para o inferno!", não é assim que ele te diz, Scarlett? – perguntava, trocista, Isadora.
- Escusas de me estar sempre a lembrar isso! - notava-se que Scarlett não estava nada à vontade - Já vivi essa maldita cena mais do que mil vezes! A Maggie sempre podia ter-me dado um fim melhor!
- É isso, Scarlett. Nenhuma de nós é perfeita. Se temos uma ideia, se representamos uma ideia, outras nos hão-de faltar. Não somos criaturas completas, completamo-nos umas às outras. Por isso, concordei com Maria quando disse que estávamos todas de acordo. Eu luto pela condição feminina, a Florbela pela condição apaixonada, a Isadora pela condição corporal e a Scarlett pela condição patriótica.
- Sem terem uma pátria, não sentem o corpo, sem sentirem amor, não se sentirão femininas, sem serem femininas, não darão valor ao corpo, sem gostarmos de nós próprios, de que nos vale a paixão? Tudo se completa... - Era Florbela que rematara.
Maria estava confusa. Muita coisa ainda não percebera.
- Mas porquê eu?
Foi Isadora na sua precoce infantilidade que lhe respondeu.
- Porque tu, Maria Sklodowska, vais-nos suplantar a todas. Embora todas nós sejamos portadoras de ideias universais, todas nós somos, no fundo, umas egoístas, só pensamos em nós próprias ou naqueles que nos estão muito próximos. Eu cultivo o meu corpo, a Florbela inventa príncipes encantados para a sua desdita, a Simone combate pela causa feminina, excluindo portanto, os homens e a Scarlett luta pelo seu castelo de terra ali para o Sul do Novo Continente. Tu, não, Maria, tu vais construir uma obra verdadeiramente universal em proveito de um progresso tecnológico que, fatalmente, terá de acompanhar o fulgor das ideias e das emoções. Vai para o laboratório mas não te esqueças das lágrimas apaixonadas da pobre da Florbela, da garra e sentido patriótico da Scarlett, da força da militância da Simone que luta pelo que quer alcançar e da minha sensualidade improvisada, dos meus sentidos, dos meus saltos, do amor próprio, do orgulho em seres quem és. A Ciência sem isso, nada será, apenas fará perigar a nossa vida...
Tudo estava a ficar claro. Maria parecia compreender os constantes avisos mas não entendia que mulher ela viria a ser. Famosa, altruísta, mas como? Pela Matemática? Pela Física?
De repente ouviu-se uma voz vinda de fora.
- Desculpa, Maria, mas o jantar está na mesa. Se queremos ir ao teatro, temos de nos despachar.
Era Edith Clery que, desta maneira, apressava Maria. Esta respondeu-lhe e Edith voltou a descer as escadas.
- Até esta senhora que tu achas tão amável foi alguém em tua vida. Ouvirás falar dela: alimentará as tuas emoções e refreará o teu espírito nas horas em que estiveres congestionada com tanto número. A sua voz não te será indiferente. Escuta-a, pois valerá a pena. Emociona a tua ciência, solta as emoções e sensações. Chamar-se­-à Piaf.
E de novo "Non, je ne regrette rien" ecoou pelos ouvidos de Maria. Fechou os olhos e sentiu--se mais morta que viva.
Fechou o livro de Margaret Mitchell e, por encanto, viu perante si algo que a acompanhara pela vida inteira - eram quatro sinais que ela ou um outro vindouro haveria de compreender: uma lágrima num lenço enrodilhado, uma écharpe vermelha que segundos antes Isadora ondulava no ar, um mapa da Polónia com mil marcas vermelhas apontando cidades e um leque de fêmea.
Pátria, Amor, Corpo e Mulher, quatro cavaleiros com os quais haveria de aprender a lidar. Como condimento de tudo isso, as emoções vivas e multiformes que tanto podem viver na boca de Desdémona como na de Joana D'Arc ou na nostalgia de Edith e na saudade de Penélope...
Tudo isso aliado à sua ciência predilecta!
Quando regressou do teatro, as estrelas que viu do seu quarto tinham uma luz e brilho diferentes.
Eram mais vivas, mais suas...


(...)

Na manhã seguinte, deixou-se dormir até tarde.
Foi necessário que a Edith Clery a viesse acordar, alta ia já a manhã.
- Maria, Maria, acorda que está um colega lá em baixo à tua procura. Diz que combinaram ir hoje fazer uma experiência para o laboratório.
Maria deu acordo de si.
- Um colega? Quem é?
A resposta de Edite não se fez esperar.
- É um tal de Curie, Pierre Curie. Sabes quem é, não é verdade, Maria?
Ouvido isto, Maria lembrou-se do encontro e saltou da cama. Foi à janela e respirou fundo.

Paris era tão linda!
(...)
"Os Disfarces de Arlequim", in A Fazer de Contos, Coimbra Editora 2008

3 comentários:

Anónimo disse...

terei, certamente, que adquirir para ler...mas só há na Coimbra Editora ?(fica em descaminho...).

Parabéns ( pelo conto, pelo livro, pela participação).

Bj.

C (EN)

Anónimo disse...

Notável este conto.
leiam-no todo. Uma simbiose perfeita de um tempo que se entrelaça na história e na fantasia.
Admirável...
Também amei o tempo das promessas, o conto do José Eusébio Almeida e o conto final da mãe que mata por amor...
Teresa M.

Passiflora Maré disse...

Os pequenos trechos são belos. Impõe-se a aquisição dos dois livros de contos, por estes e por outros que, entretanto, já provei...