quinta-feira, 14 de maio de 2009

O Maestro


Trazemos connosco o passado como um cometa arrasta a sua cauda. Naquele tem­po, eu lia o Livro do Desassossego e encontrava nele o mapa da minha cidade in­terior. Percorria as suas palavras lúcidas e tristes, cismava naquelas verdades que parecem mentiras, contemplava esse grande estilo frio e penumbro­so, aceso só para dentro, que me é tão real como um sonho.
Via no patrão Vasques o símbolo da banalidade útil da vida. Fazia dos meus dias a escrita meticulosa de uma contabilidade da alma e an­dava pela Rua dos Douradores - onde também há universo! - como se fosse sempre o estrangeiro que todos, por vezes, nos sentimos.
Até os res­taurantes económicos e sombrios, onde apenas se pode estar bem sozinho, me pareciam os únicos lugares do mundo, além das ruas desertas onde os passos ecoam, dignos de um destino metafís1co.
Num desses restaurantes, conheci um homem que aí jantava e tinha no sorriso com que saudava a minha entrada na sala o último vestígio de uma anti­ga e quase esquecida proximidade humana.
Esse sorriso, que começou por cessar a meio da sua escas­sez, foi, com o tempo, dilatando-se, até se tornar claro e oferecido. Numa noite de chuva, o homem, sentado na mesa próxima da minha, dirigiu-me uma palavra e eu notei que até a longínqua indife­rença dos astros se havia alterado. Tempo passado, deixou cair uma frase e o meu espanto viu-se como uma cor.
Até que, num entardecer doce de primave­ra, mais queirosiano que pessoano, se aproximou de mim, disse que morava perto e convidou-me pa­ra um concerto em sua casa.
Como o sabia solitá­rio, imaginei-o solista de um qualquer instrumento e acedi a acompanhá-lo. Mas, em breve, seria escla­recido sobre a sua arte. Entrámos em casa e sen­tou-me num sofá gasto. Feliz por ter a assistência que todas as noites lhe faltava, pegou numa batuta, dispôs a partitura sobre a estante e começou a diri­gir, com gestos intensos, uma orquestra imaginária que tocava a Quinta Sinfonia de Mahler.
Quando chegou o adagietto, o seu êxtase esteve à altura do som pungente que saía do gira-discos onde rodava, na .sua monotonia circular, um disco com a versão daquela sinfonia dirigida por Abbado.
Percebi en­tão que, todas as noites, ele dirigia, daquela manei­ra singular, uma grande obra, convencido, como tantos outros que pensam criar o que já está criado, de que assim prestava um alto serviço à cultura. Na véspera, confessou-me, tinha regido Il Trovatore, da Callas e do Karajan. E acrescentou com orgulho: «Correu-me muito bem!»
O concerto a que assisti também foi magnífi­co. Quando me despedi, pensei: ao contrário do homem da minha primeira crónica, que, no café, apagava as palavras que escrevia, sem que delas tenha sobrado sequer uma, este, com a sua direc­ção imaginária, lega ao futuro uma obra que perdu­rará - vasta, sólida e gloriosa.
Um, tudo criou e nada deixou; o outro, tudo deixa sem nada criar.
Dos dois, qual é, afinal, o mais prevenido?

José Manuel dos Santos – coluna Impressão Digital – in Expresso de 14.10.06

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