Trazemos connosco o passado como um cometa arrasta a sua cauda. Naquele tempo, eu lia o Livro do Desassossego e encontrava nele o mapa da minha cidade interior. Percorria as suas palavras lúcidas e tristes, cismava naquelas verdades que parecem mentiras, contemplava esse grande estilo frio e penumbroso, aceso só para dentro, que me é tão real como um sonho.
Via no patrão Vasques o símbolo da banalidade útil da vida. Fazia dos meus dias a escrita meticulosa de uma contabilidade da alma e andava pela Rua dos Douradores - onde também há universo! - como se fosse sempre o estrangeiro que todos, por vezes, nos sentimos.
Até os restaurantes económicos e sombrios, onde apenas se pode estar bem sozinho, me pareciam os únicos lugares do mundo, além das ruas desertas onde os passos ecoam, dignos de um destino metafís1co.
Num desses restaurantes, conheci um homem que aí jantava e tinha no sorriso com que saudava a minha entrada na sala o último vestígio de uma antiga e quase esquecida proximidade humana.
Num desses restaurantes, conheci um homem que aí jantava e tinha no sorriso com que saudava a minha entrada na sala o último vestígio de uma antiga e quase esquecida proximidade humana.
Esse sorriso, que começou por cessar a meio da sua escassez, foi, com o tempo, dilatando-se, até se tornar claro e oferecido. Numa noite de chuva, o homem, sentado na mesa próxima da minha, dirigiu-me uma palavra e eu notei que até a longínqua indiferença dos astros se havia alterado. Tempo passado, deixou cair uma frase e o meu espanto viu-se como uma cor.
Até que, num entardecer doce de primavera, mais queirosiano que pessoano, se aproximou de mim, disse que morava perto e convidou-me para um concerto em sua casa.
Como o sabia solitário, imaginei-o solista de um qualquer instrumento e acedi a acompanhá-lo. Mas, em breve, seria esclarecido sobre a sua arte. Entrámos em casa e sentou-me num sofá gasto. Feliz por ter a assistência que todas as noites lhe faltava, pegou numa batuta, dispôs a partitura sobre a estante e começou a dirigir, com gestos intensos, uma orquestra imaginária que tocava a Quinta Sinfonia de Mahler.
Quando chegou o adagietto, o seu êxtase esteve à altura do som pungente que saía do gira-discos onde rodava, na .sua monotonia circular, um disco com a versão daquela sinfonia dirigida por Abbado.
Percebi então que, todas as noites, ele dirigia, daquela maneira singular, uma grande obra, convencido, como tantos outros que pensam criar o que já está criado, de que assim prestava um alto serviço à cultura. Na véspera, confessou-me, tinha regido Il Trovatore, da Callas e do Karajan. E acrescentou com orgulho: «Correu-me muito bem!»
O concerto a que assisti também foi magnífico. Quando me despedi, pensei: ao contrário do homem da minha primeira crónica, que, no café, apagava as palavras que escrevia, sem que delas tenha sobrado sequer uma, este, com a sua direcção imaginária, lega ao futuro uma obra que perdurará - vasta, sólida e gloriosa.
O concerto a que assisti também foi magnífico. Quando me despedi, pensei: ao contrário do homem da minha primeira crónica, que, no café, apagava as palavras que escrevia, sem que delas tenha sobrado sequer uma, este, com a sua direcção imaginária, lega ao futuro uma obra que perdurará - vasta, sólida e gloriosa.
Um, tudo criou e nada deixou; o outro, tudo deixa sem nada criar.
Dos dois, qual é, afinal, o mais prevenido?
José Manuel dos Santos – coluna Impressão Digital – in Expresso de 14.10.06
José Manuel dos Santos – coluna Impressão Digital – in Expresso de 14.10.06
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