segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Cinderela procura sapato


Há muitas vidas atrás (tantas como as de um gato) sentaram-se em frente a mim num restaurante e disseram-me: “Fica tranquila. No dia em que perceba que a minha felicidade não passa por ti digo-te logo”. Enfim, não sei se a frase foi exactamente esta. Não asseguro se começava com “não te preocupes” ou com “fica tranquila”, se terminava com “serás a primeira a saber” ou com “digo-te logo”. Mas o meio da frase corresponde exactamente àquilo que transcrevi “perceber que a minha felicidade não passa por ti”.
Ele um dia percebeu isso. Não sei quando, porque não mo disse. Sei que um dia, outro dia, eu percebi que ele já tenha percebido. E aí percebemos todo o tempo que perdemos e a dor que causámos.
Mas naquela noite eu acreditei que ia ser mesmo assim. É que nessa altura eu ainda acreditava que as pessoas eram, no mínimo, honestas. Já sabia – já se tinham encarregado de me ensinar – que as pessoas não gostam durante toda a vida. Um dia acordam e, “prontos”, aquilo, a coisa, já não está lá. Aprendi a viver com isso, embora fosse contra tudo o que os contos de fada, os livros, e os filmes a preto e branco (já viram que nesses filmes todas as histórias têm finais felizes? Ai, se ao menos a nossa vida fosse um filme a preto e branco!) me tinham ensinado. Mas ainda acreditava que quando esse momento chegava as pessoas nos diziam. Nos chamavam e diziam “Olha, gostei muito do restaurante de ontem. E o soufflé estava óptimo. Por falar nisso, e antes que me esqueça, descobri que já não gosto de ti. Posso utilizar a tua paste de dentes?”. Qualquer coisa deste tipo…
Afinal, as pessoas honestas são como os estados democráticos. Já reparam que todas as repúblicas que incluíram o “democrática” na designação oficial são tudo menos isso? República Democrática Popular da Coreia, vulgo, Coreia do Norte. Tão democrática que ainda hoje pensam que venceram a nossa selecção devido à isenção noticioso que impera no país. República Democrática do Congo. Do mais democrático que há, e sem massacres. República Democrática Alemã. A democracia era tanta que gerou uma intoxicação democrática e o povo, que é quem mais ordena, arriscava a morte para fugir para o lado de cá.
Pois as pessoas honestas são exactamente assim: quanto mais se vangloriam da sua rectidão pessoal e dos seus valores, mais escondem e mais mentem. Àquelas que nos garantem ser transparentes como um espelho de água, que passeiam pelo mundo fora afirmando que não são rudes mas sim brutalmente honestas, em boa verdade, escondem o rabinho entre as pernas quando chega o momento de mostrar de que material somos feitos.
Porque ninguém é culpado por não gostar. O sentimento é um “fenómeno” transcendente, divino até, que a ciência ainda não conseguiu dominar. Ainda não se descobriu o “amor in vitro”, que solucionaria muitos dos nossos problemas, e aqueles inférteis no romance poderiam finalmente encontrar a sua meia-laranja. De modo que choramos até à exaustão, batemos com a cabeça na parede, ficamos de cama uma semana e perdemos 5 kg, mas depois, eventualmente, seguimos a nossa vida. Porque sabemos que estas coisas acontecem e não há como apontar o dedo. Mas, pelo contrário, todos somos responsáveis por quem cativamos, sejamos pequenos príncipes ou princesas não tão pequeninas. Devemos-lhes, no mínimo, honestidade, lealdade, respeito. E por isso devemos enfrentar as nossas próprias fraquezas e dizer, cara a cara, que tudo acabou.
Uma amiga minha soube que o seu casamento de mais de uma década tinha terminado por sms. Há quem termine por e-mail, por post it, por interposta pessoa. Há quem nunca termine e simplesmente desapareça. Há quem nunca termine e simplesmente arranje uma companhia para o exercício físico. Há quem nunca termine e em momentos de maior honestidade diga que afinal, a paixão passou, mas depois chore como um menino, volte atrás e nos peça perdão, arrastando esta tragi-comédia anos a fios, prendendo-nos à vaga esperança de não saber qual das versões é a verdadeira. Há quem nunca termine e simplesmente se resigne a passar o resto da via com uma pessoa que não ama, ter filhos com ela, comprar um casa e um carro, e talvez uma Bimby.
No dia em que deixares de gostar de mim diz-me depressa. Sem hesitações nem pudores, nem palavras de melaço. Porque assim mais depressa eu morro e mais depressa vivo outra vez.


Lido no blogue «Cinderela PROCURA SAPATO»

3 comentários:

Anónimo disse...

lindo!
Tenho nome de Flor

Camila Caringe disse...

In-crí-vel!

Simplesmente lindo.

Unknown disse...

Encontrei aqui esta pérola...
Pois o que mais dói é mesmo a falta de coragem para nos contarem uma história, para podermos pelo menos agarrarmo-nos a qualquer coisa e não ficarmos no "não sei..."
Espero ser corajosa quando for a minha vez... Porque às vezes quando pensamos que pertencemos ao grupo dos honestos a vida surpreende-nos e somos como os outros...
Mas como já vivi o outro lado da dor acho que serei capaz de contar essa história e pedir desculpa por fazer sofrer... porque deixar de gostar pode acontecer... mas isso não legitima a fuga e a covardia.
Carmo