quarta-feira, 9 de março de 2011

Ainda da paz




Escrevo ao fim de uma semana de silêncio e recolhimento numa casa grande com torres e claustro. Parece um antigo mosteiro de granito e cal ampliado ao longo dos tempos e agora convertido numa enorme casa cheia de quartos, salas e salões, corredores de pedra, escadarias largas, pátios quadrados com laranjeiras e jardins de buxos, cozinhas grandes, capelas de todos os tamanhos e feitios e, no cimo deste imenso labirinto de geometria recta, um terraço a perder de vista sobre a vinha e os campos lavrados que se estendem até à inspiradora margem de dois rios que se juntam, e correm debaixo da mesma ponte.
Na entrada nobre da casa existe um lago com peixes pretos e encarnados, rodeado de flores plantadas pelo fiel jardineiro que ajoelha na terra para cuidar das suas rosas de Inverno.
Ao fim de oito dias, confesso que não sei o que se passa no mundo e sei vagamente o que se passa em minha casa. Acho que sei o suficiente. Se alguma coisa radicalmente importante tivesse acontecido ter-me-iam dito e isso sossega-me. Uma semana sem ver notícias, sem ler jornais, sem ouvir os comentadores habituais e sem ter conversas mais ou menos avulsas sobre a actualidade do momento não me parece grave. Muito pelo contrário. E se, por acaso, perdi alguma coisa essencial, sei que a apanho já a seguir. Em Soutelo, a grande notícia foi a chuva que finalmente veio substituir o sol.
Uma semana de silêncio e meditação é, para muitos, uma coisa bizarra e uma atitude rara. Embora haja cada vez mais pessoas a procurar o silêncio e a distância crítica em templos budistas, workshops zen, retiros espirituais, férias em lugares sagrados ou viagens a paraísos ecuménicos, ainda há quem estranhe o silêncio. E quem o ache inquietante ou perturbador. Percebo a desconfiança porque eu própria já fui assim.
Se me tivessem dito há 12 anos, altura em que comecei a fazer EE (Exercícios Espirituais segundo a terminologia jesuítica de Stº Inácio, fundador da Companhia de Jesus), que ia passar uma semana por ano em silêncio e oração, eu tinha fugido. Ainda bem que não me disseram.
Conhecendo-me como conheço sei que tenho a tentação de escapar a tudo o que me querem impor e, daí, a minha gratidão comovida a quem um dia se lembrou de me desafiar a ter estas conversas no silêncio.
E é disso mesmo que se trata: de uma longa conversa, viva e desafiadora, sobre o essencial, no sentido de pôr a vida em perspectiva, de arrumar melhor as ideias, de ler o passado recente e projectar o futuro próximo. Uma longa conversa no sentido metafórico, de quem sabe que é possível manter um diálogo interior que interpela e leva mais longe, mas também no sentido literal porque falamos todos os dias com quem nos orienta e ouvimos este mesmo orientador falar várias vezes por dia, nas pequenas conferências que antecedem os tempos de meditação.
O silêncio, neste enquadramento e com esta exigência de profundidade, faz todo o sentido e não é nenhuma provação. Muito menos uma penitência. O objectivo é desligar da confusão, reduzir os excessos, diluir os barulhos, eliminar os ruídos na comunicação, depurar as conversas e limpar o olhar. Só isto.
Para quem está de fora, o silêncio pode parecer um teste ou uma prova olímpica de endurance mas, para quem está dentro, o silêncio sai sem esforço. Com a naturalidade de quem sabe que não falar não quer dizer não comunicar.
Aliás, esta longa conversa não teria o mesmo proveito nem os EE não seriam tão regeneradores se pudéssemos falar uns com os outros a toda a hora, pois desperdiçamos facilmente o nosso tempo e a nossa concentração em conversas de mesa e corredores.
Na verdade a contenção leva-nos muito longe, de muitas maneiras, e até podemos fazer amigos para a vida neste silêncio puro, permanentemente atravessado de olhares, sorrisos e gestos francos. A generosidade que se descobre em quem está ao nosso lado, por exemplo, ou a sensibilidade que se adivinha nos que demoram às refeições para ouvir a música escolhida com intenção e critério (um dia gostava de saber quem faz as play lists de música clássica, óperas e coros maravilhosos que ouço nos EE, para as poder reproduzir em casa) ou, ainda, a elevação com que todos vivem o recolhimento fazem do silêncio uma experiência marcante mas, também, profundamente estética.
O maior mistério reside na conjugação sempre feliz de pessoas que, sem se conhecerem, passam a encontrar-se todos os dias e, neste encontro, revelam uma abertura, um respeito e um espírito de grupo improváveis noutras circunstâncias e lugares.
Importa sublinhar que há um momento ao fim de cada dia em que, com moderação, podemos falar daquilo que mais nos tocou ou marcou. Negativa e positivamente, note-se. E é também nesta altura em que os que querem falar, falam, que nos conhecemos melhor e se tecem os tais laços que duram uma vida.
Aos 46 anos sinto que pertenço claramente à ala senior dos retiros porque as inscrições são quase sempre feitas em centros universitários mas, nesta semana de preparação para o Natal, havia gente de todas as idades e condições. Rapazes e raparigas, homens e mulheres com vocações e profissões diversas, histórias de vida desiguais e expectativas distintas. Em tudo diferentes, excepto no credo.
Desta vez o orientador era Vasco Pinto de Magalhães, padre jesuíta que começou a sua formação em engenharia mas acabou por se licenciar em Filosofia, em Lisboa, e depois em Teologia, em Roma. Antigo jogador de rugby, dizem que era um dos melhores da sua geração. Autor de vários livros, é um conferencista muito solicitado por ser um grande comunicador. Em resumo: um sábio com o dom da palavra. Ou um verdadeiro Mestre, como diria Tolentino de Mendonça, poeta, também padre e outro grande sábio.
Numa Igreja com tantos problemas de comunicação é importante haver quem traduza e comunique bem a realidade bíblica. Quem seja capaz de descer ao concreto da vida, onde as coisas acontecem; quem nos ajude a compreender o incompreensível; a resolver alguns dos nossos dilemas e a dar sentido ao mistério; e quem saiba rasgar caminhos que possamos percorrer para ir mais longe.
Vasco Pinto de Magalhães tem este e muitos outros talentos. Ouvi-lo dissertar é um luxo espiritual e um desafio intelectual permanente. Fala a sorrir e usa palavras muito simples para dizer coisas muito profundas. A sua alegria diverte, contagia e ilumina. A sua atitude firme, centrada exclusivamente no essencial, inspira e transforma.
A profundidade de Vasco Pinto de Magalhães leva-nos a nós mais fundo e a sabedoria espantosa com que lê a vida e interpreta os factos, surpreende. E é esta surpresa associada à ‘extravagância’ da sua simplicidade que verdadeiramente convertem.
Percebo Tolentino de Mendonça quando fala dele e da maravilha de ser um padre raro na Igreja por ter criado um discipulado. Vasco Pinto de Magalhães tem realmente uma legião de discípulos que o seguem, lêm e acompanham por reconhecerem nele um verdadeiro Mestre. Na maneira como acolhe, como ajuda a pensar, como ensina a rezar, como mostra os caminhos que levam ao perdão e à reconciliação, na forma como revela a evidência e, insisto, na alegria e simplicidade com que nos centra no essencial.
Ao fim de uma semana de EE (que também podem ser feitos uma versão mais abreviada de três dias) a ouvir Vasco Pinto de Magalhães e a reflectir nas pistas que ele sugere em cada dia, faz ainda mais eco a certeza de que num mundo pós-cristão, fragmentado e dividido, um cristão não é uma resposta definitiva, é um desafio permanente.


LAURINDA ALVES, no mesmo Soutelo onde eu estive

2 comentários:

Anónimo disse...

Feliz coincidência
Tenho nome de Flor

Anónimo disse...

O meu caminho é solitário, mas não menos desafiador. E creiam fiquei com vontade de ir a Soutelo, pois no caminho que percorro talvez me falte a dimensão da comunidade...
P.M