Escrevo ao fim de uma semana de silêncio e recolhimento numa casa grande com torres e claustro. Parece um antigo mosteiro de granito e cal ampliado ao longo dos tempos e agora convertido numa enorme casa cheia de quartos, salas e salões, corredores de pedra, escadarias largas, pátios quadrados com laranjeiras e jardins de buxos, cozinhas grandes, capelas de todos os tamanhos e feitios e, no cimo deste imenso labirinto de geometria recta, um terraço a perder de vista sobre a vinha e os campos lavrados que se estendem até à inspiradora margem de dois rios que se juntam, e correm debaixo da mesma ponte.
Na entrada nobre da casa existe um lago com peixes pretos e encarnados, rodeado de flores plantadas pelo fiel jardineiro que ajoelha na terra para cuidar das suas rosas de Inverno.
Ao fim de oito dias, confesso que não sei o que se passa no mundo e sei vagamente o que se passa em minha casa. Acho que sei o suficiente. Se alguma coisa radicalmente importante tivesse acontecido ter-me-iam dito e isso sossega-me. Uma semana sem ver notícias, sem ler jornais, sem ouvir os comentadores habituais e sem ter conversas mais ou menos avulsas sobre a actualidade do momento não me parece grave. Muito pelo contrário. E se, por acaso, perdi alguma coisa essencial, sei que a apanho já a seguir. Em Soutelo, a grande notícia foi a chuva que finalmente veio substituir o sol.
Uma semana de silêncio e meditação é, para muitos, uma coisa bizarra e uma atitude rara. Embora haja cada vez mais pessoas a procurar o silêncio e a distância crítica em templos budistas, workshops zen, retiros espirituais, férias em lugares sagrados ou viagens a paraísos ecuménicos, ainda há quem estranhe o silêncio. E quem o ache inquietante ou perturbador. Percebo a desconfiança porque eu própria já fui assim.
Se me tivessem dito há 12 anos, altura em que comecei a fazer EE (Exercícios Espirituais segundo a terminologia jesuítica de Stº Inácio, fundador da Companhia de Jesus), que ia passar uma semana por ano em silêncio e oração, eu tinha fugido. Ainda bem que não me disseram.
Conhecendo-me como conheço sei que tenho a tentação de escapar a tudo o que me querem impor e, daí, a minha gratidão comovida a quem um dia se lembrou de me desafiar a ter estas conversas no silêncio.
E é disso mesmo que se trata: de uma longa conversa, viva e desafiadora, sobre o essencial, no sentido de pôr a vida em perspectiva, de arrumar melhor as ideias, de ler o passado recente e projectar o futuro próximo. Uma longa conversa no sentido metafórico, de quem sabe que é possível manter um diálogo interior que interpela e leva mais longe, mas também no sentido literal porque falamos todos os dias com quem nos orienta e ouvimos este mesmo orientador falar várias vezes por dia, nas pequenas conferências que antecedem os tempos de meditação.
O silêncio, neste enquadramento e com esta exigência de profundidade, faz todo o sentido e não é nenhuma provação. Muito menos uma penitência. O objectivo é desligar da confusão, reduzir os excessos, diluir os barulhos, eliminar os ruídos na comunicação, depurar as conversas e limpar o olhar. Só isto.
Para quem está de fora, o silêncio pode parecer um teste ou uma prova olímpica de endurance mas, para quem está dentro, o silêncio sai sem esforço. Com a naturalidade de quem sabe que não falar não quer dizer não comunicar.
Aliás, esta longa conversa não teria o mesmo proveito nem os EE não seriam tão regeneradores se pudéssemos falar uns com os outros a toda a hora, pois desperdiçamos facilmente o nosso tempo e a nossa concentração em conversas de mesa e corredores.
Na verdade a contenção leva-nos muito longe, de muitas maneiras, e até podemos fazer amigos para a vida neste silêncio puro, permanentemente atravessado de olhares, sorrisos e gestos francos. A generosidade que se descobre em quem está ao nosso lado, por exemplo, ou a sensibilidade que se adivinha nos que demoram às refeições para ouvir a música escolhida com intenção e critério (um dia gostava de saber quem faz as play lists de música clássica, óperas e coros maravilhosos que ouço nos EE, para as poder reproduzir em casa) ou, ainda, a elevação com que todos vivem o recolhimento fazem do silêncio uma experiência marcante mas, também, profundamente estética.
Importa sublinhar que há um momento ao fim de cada dia em que, com moderação, podemos falar daquilo que mais nos tocou ou marcou. Negativa e positivamente, note-se. E é também nesta altura em que os que querem falar, falam, que nos conhecemos melhor e se tecem os tais laços que duram uma vida.
Aos 46 anos sinto que pertenço claramente à ala senior dos retiros porque as inscrições são quase sempre feitas em centros universitários mas, nesta semana de preparação para o Natal, havia gente de todas as idades e condições. Rapazes e raparigas, homens e mulheres com vocações e profissões diversas, histórias de vida desiguais e expectativas distintas. Em tudo diferentes, excepto no credo.
Desta vez o orientador era Vasco Pinto de Magalhães, padre jesuíta que começou a sua formação em engenharia mas acabou por se licenciar em Filosofia, em Lisboa, e depois em Teologia, em Roma. Antigo jogador de rugby, dizem que era um dos melhores da sua geração. Autor de vários livros, é um conferencista muito solicitado por ser um grande comunicador. Em resumo: um sábio com o dom da palavra. Ou um verdadeiro Mestre, como diria Tolentino de Mendonça, poeta, também padre e outro grande sábio.
Numa Igreja com tantos problemas de comunicação é importante haver quem traduza e comunique bem a realidade bíblica. Quem seja capaz de descer ao concreto da vida, onde as coisas acontecem; quem nos ajude a compreender o incompreensível; a resolver alguns dos nossos dilemas e a dar sentido ao mistério; e quem saiba rasgar caminhos que possamos percorrer para ir mais longe.
Vasco Pinto de Magalhães tem este e muitos outros talentos. Ouvi-lo dissertar é um luxo espiritual e um desafio intelectual permanente. Fala a sorrir e usa palavras muito simples para dizer coisas muito profundas. A sua alegria diverte, contagia e ilumina. A sua atitude firme, centrada exclusivamente no essencial, inspira e transforma.
A profundidade de Vasco Pinto de Magalhães leva-nos a nós mais fundo e a sabedoria espantosa com que lê a vida e interpreta os factos, surpreende. E é esta surpresa associada à ‘extravagância’ da sua simplicidade que verdadeiramente convertem.
Percebo Tolentino de Mendonça quando fala dele e da maravilha de ser um padre raro na Igreja por ter criado um discipulado. Vasco Pinto de Magalhães tem realmente uma legião de discípulos que o seguem, lêm e acompanham por reconhecerem nele um verdadeiro Mestre. Na maneira como acolhe, como ajuda a pensar, como ensina a rezar, como mostra os caminhos que levam ao perdão e à reconciliação, na forma como revela a evidência e, insisto, na alegria e simplicidade com que nos centra no essencial.
Ao fim de uma semana de EE (que também podem ser feitos uma versão mais abreviada de três dias) a ouvir Vasco Pinto de Magalhães e a reflectir nas pistas que ele sugere em cada dia, faz ainda mais eco a certeza de que num mundo pós-cristão, fragmentado e dividido, um cristão não é uma resposta definitiva, é um desafio permanente.
LAURINDA ALVES, no mesmo Soutelo onde eu estive
2 comentários:
Feliz coincidência
Tenho nome de Flor
O meu caminho é solitário, mas não menos desafiador. E creiam fiquei com vontade de ir a Soutelo, pois no caminho que percorro talvez me falte a dimensão da comunidade...
P.M
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