terça-feira, 27 de março de 2012

Festim




Caía a noite no Guincho.
À hora marcada, Tomás compareceu no lugar combinado, dizendo nos Plátanos que o cinema esperava por si.
E lá serviu um vinho da Toscânia e verteu-o nos cálices de um cristal encantado guardado na memória destes incautos amantes.
Não se via vivalma nas ruas da cidadela e eles apenas tinham como companhia as mudas pedras das calçadas e dos vetustos edifícios e um vento inesquecível capaz de trazer aromas e notícias de outras paixões.
Os canais da urbe serviam de cenário idílico para este jantar, dando o tom musical para esta valsa dançada por tanto amor e com a garra insuspeita das garças coloridas que emergiam do interior deste homem e desta mulher.
Ele sentou-se à mesa, com uma delicadeza inusitada. Ela já ali tinha colocado a massa especial capaz de coroar este momento - uma massa cozinhada, em lume de eterna chama, com espinafres de um verde de hera de italianas paragens.
Laura dizia-se boa cozinheira. Como aperitivo, resolveu revelar-lhe como cozinhara aquela massa. Aos amantes, tudo se conta, até as traições.
Para os confeccionar, ela principiara por levar ao lume um tacho com bastante água temperada com sal e, quando esta levantou fervura, introduziu seis cannelloni, deixando-os cozer durante 15 minutos, não mais para não quebrarem.
Retirou os cannelloni e passou-os, com volúpia, por água fria. Escolheu, com critério e com o coração, os espinafres e lavou-os em água fria corrente, misturada com as suas lágrimas de alegria que caíam sem aviso. Cozeu-os em pouca água temperada com sal durante 10 minutos, escorreu-os no término da cozedura, espremeu-os e picou-os com todo o carinho do mundo.
Após derreteu poucas lágrimas de margarina e polvilhou outro tanto de farinha; quando à superfície apareceu uma espuma esbranquiçada, regou com gotas de leite e deixou ferver, mexendo sempre, com toda a paciência e até engrossar. Temperou com sal, pimenta e noz-moscada. Paulatinamente. Serenamente.
Já fora do lume, ela incorporou no molho a carne cozinhada e os espinafres, aí rectificando os temperos com a alma na mão.
Deitou, então, o recheio dentro de um saco pasteleiro munido de um bico e recheou os cannelloni, colocando-os lado a lado num tabuleiro untado com margarina.
Tudo isto enquanto as cotovias prosseguiam o seu encantado cântico noctívago.
Cobriu os cannelloni com um molho de tomate previamente confeccionado, polvilhou com queijo ralado e levou a forno médio durante o resto do tempo do mundo, aquele que sobrava de tanta impaciência, durante os quais se foi maquilhando com as cores do jurista pintor.
Estava chegada a hora de servir esta receita. Feita com os cheiros dos amores-perfeitos que despontavam do seu coração. E daquele mar sossegado e cúmplice que testemunhava este encontro.
Em surdina.
Sem burburinho.
Em tom de quieta maré.
Eles, já sentados na mesa feita da pedra daquela praia que os albergava, olharam-se olhos nos olhos e soltaram um beijo perfumado, envolvido na brisa desta noite.
No ar, ouviu-se o som de um violoncelo.
Beberam um outro vinho, desta vez napolitano, tinto de morrer, e começaram a tragar aquela massa feita com a paixão dos bons momentos, com o ouro das pétalas de esperança que cresciam nos doces e quentes caracóis de um e de outro.
Nessa altura, ele deu-lhe um nome. Próprio. Só dela. Soube-lhe, então, os sinais particulares, os gestos, a língua. Só de lhe olhar nas íris, só de lhe sentir o cheiro, só de lhe provar o tempero.
Como resposta, ela acariciou-lhe os cabelos e sussurrou o nome dele.
Ao acaso.
Como uma balada.
- Não me deixes deixar-te, Tomás!
E enquanto a massa ainda esfriava no prato dele, este homem disse-lhe com o pincel na voz.
- Nunca, Laura, meu amor!

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