terça-feira, 20 de abril de 2021

Boa noite, tristeza

Dificilmente encontraria melhor motivo para quebrar o jejum de cinema em sala, após meses de confinamento forçado, do que a visualização do filme de Chloé Zhao, NOMADLAND, o mais que merecido Oscarizado filme do ano.
Para mim, ver Cinema é ir à sala e deixar a televisão em paz.
Mesmo que numa sala com apenas 5 ou 6 companheiros de aventura numa tarde de Coimbra.
Éramos seis na sala.
Os bastantes.
Os suficientes.
Deixei o meu sofá entregue aos ácaros e saí para, quase em tom de gala, assistir à projecção de um filme numa sala que me é querida, aqui em Coimbra.
Saudei a menina dos bilhetes, minha eterna cúmplice neste ritual quase sagrado, e entrei pelo breu dentro.
E ouvi Einaudi a assaltar a sala escura e ávida de gente.
Confesso que ia expectante e com a ideia pré-concebida de que este filme seria mais um documentário do que uma obra fílmica.
Errei.
Redondamente.
Não é só um road-movie este «Nomadland».
É um filme que SÓ PODE ser visto em grande écran.
E é mais do que isso.
Venderam-me como uma adaptação do livro de 2017 da escritora e jornalista Jessica Bruder e reflecte, em 2011, o impacto da crise financeira de 2008, retratando cidadãos norte-americanos desfavorecidos que viajam pelo Oeste do país e que vivem de empregos temporários.
Mas este não é um filme comum, tão atípico se veste.
Não é um filme de despedidas mas de eternos reencontros, entre gente nómada, que decide viver assim às fatias, sem poiso certo, considerando que a nossa casa, o nosso lar, reside onde está o nosso coração, sem argamassa ou tijolo.
Entre a Dakota do Sul, o Nebraska, o Arizona, Nevada e a Califórnia, o nosso mapa acende-se ao som do piano de Einaudi, penetrando em mundos tão desconhecidos e quase inóspitos.
Ali não há chão, há muitos chãos, há poeira e mil pós de estrelas que caem todos os dias nas nossas mãos.
Ali temos reais nómadas, a fazer de actores e actrizes, a fazer dos seus próprios papéis de vida como se fosse muito mais fácil assim.
É tão mais difícil fazer de nós, acreditem.
E eles e elas fazem de si próprios, encontrando trabalhos temporários e mal pagos só para subsistirem, verbalizando que lhes basta ter visto uma família de alces à beira rio ou um conjunto de pelicanos perdidos no Alaska, não esperando nada mais da vida.
Não têm planos.
Apenas a falta deles.
Vão-se reencontrando, depois de lutos e lutas insanas contra o tempo ou a falta dele, filhos a pais que não querem sedentarizar no lar perfeito e imobilizante, irmãs que se amam mas que se querem apartar.
E há Frances MacDormand, Fren, de sua graça no filme.
É superlativa neste registo, em contenção (pouco própria do seu feitio algo histriónico) e profundidade dramática (embora continue a apostar na vitória da minha musa Carey Mulligan, na noite de 25 de Abril).
O seu retrato em frente a um velho cinema de aldeia onde passa o filme «The Avengers» é antológico e contraditoriamente perfeito.
Tudo ali lhe lembra o marido recém-falecido, ele que nunca quis sair do mesmo local e sempre acreditou que à vida apenas bastava uma casinha branca e uma cerca de trigo loiro.
E Fren sai à procura de si.
Dos seus silêncios.
Das suas ausências.
Das suas lonjuras.
De uma América cem vezes perdida e mil vezes encontrada.
As paisagens da alma de Fren sabem ao gelo e à neve do Colorado e ao calor do Arkansas.
Já alguém quis ver no filme uma viagem rumo ao "pesadelo americano" vivenciado pelos invisíveis sem voz, vítimas dos múltiplos atropelos do capitalismo.
Não me interessam as razões para estas partidas.
O que me afectou na fita de Zao foi a imensa tristeza que me causou.
De uma tristeza que se quer sentir.
Com a maior das alegrias.
Como a cor das quedas de água, das andorinhas andarilhas, dos bisontes cegos de medo.
No fundo, a América, ou seja qual for a nossa casa, é muito mais a paisagem agreste das montanhas e dos vales, o choro da criança que anseia por ser mimada pelos pais, o mar que toca nas rochas como se se tratasse de um solo de violino, o Sol que amanhece pela fresta da barraca, do que a argamassa, o tijolo e a materialidade de que nos querem vestir.
No fundo, abraçar a crença de que pela estrada, por trás das montanhas, haverá sempre um vislumbre de novidade e futuro, muito futuro, mesmo que sem direito a pujança financeira e sucesso social.
Ouve-se por ali:
“One of the things I love most about this life is that there’s no final goodbye. I’ve met lot of people out here and we don’t ever say a final goodbye. We just say ‘I’ll see you down the road’. And I do… I see them again.”
Swankie, uma nómada real e erigida a actriz, diz a certa altura:
"I think I’ve had a pretty good life. How many people can say that?"
É verdade - vemo-nos por aí.
Para todos os que escolheram partir.
Para sempre ou só até ao próximo encontro terreno.
*
Assim vale a pena fazer Cinema.
Assim vale a pena viver para ver isto.
Uma tristeza que faz bem.
Como se, por hora e meia, a pandemia desaparecesse e, no seu lugar, só me aparecessem poeiras, águias rainhas e escarpas montanhosas por trás do Sol poente, marcas de um Deus Maior que a todos ama mesmo sem ser por todos amado.


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