quarta-feira, 12 de maio de 2021

O último poema de um PAI

Há um homem perdido dentro da sua mente.
Como se fosse um puzzle, com entradas e saídas temporais, portas que se fecham, rostos que não se repetem, nomes que não fazem sentido.
Num apartamento de classe média alta, jaz um ancião, de nome Anthony (curiosamente, o mesmo nome do enorme ACTOR que lhe dá corpo e alma, e que até tem a mesma exacta idade – nascidos ambos a 31 de Dezembro de 1937), sem conhecer as pessoas que consigo se cruzam, numa enredada teia de loucura e desatino própria de quem está doente e perdendo as coordenadas geográficas e mentais de toda uma vida.
Engenheiro de profissão, diz-se agora bailarino, a arte que teria preferido à dos cimentos e pedras cortantes. Porque, afinal, é no fim da vida, quando se perde a razão, que os nossos verdadeiros anseios e amores (e ódios) acabam por se revelar. A verdade não gosta da realidade. Muito mais da ilusão e da perda de tino.
Vive, afinal, com a filha Anne (que vemos na pele de Olívia Colman, uma tardia actriz que todos os anos nos maravilha, aqui a viver o mesmo nome da sua rainha do Oscar, película de Yorgos Lanthimos), num apartamento que pensa ser seu e que não quer, a todo o custo, abandonar.
Homens e mulheres estranhos sucedem-se no hall de entrada, as suas cuidadoras não resistem ao seu mau feitio e tudo cai por cima de uma filha que sofre com aquele desatino de um Pai que, a tudo e a todos, vai gritando ao mundo que sempre preferiu uma outra filha, entretanto falecida, àquela que dele cuida com enlevo e generosidade.
Custa ver o definhar de alguém, o cair das folhas de um Ser Humano, a baba e ranho acesos por uma degenerescência mental, o canto de cisne de um homem que ouve Callas todos os dias (e o excerto de Casta Diva é magnífico) e que já nem sequer distingue a voz da filha da da enfermeira do lar onde afinal o acabam por colocar.
E é magnífica a realização de Florian Zeller, que também assina o argumento, ao lado do Oscarizado Christopher Hampton, nascido no Faial, nos nossos Açores (o de Ligações Perigosas, Carrington e Expiação, e que se apresta para assinar o argumento fílmico do Sunset Boulevard que vai dar o 1º OSCAR à «minha» Glenn Close).
Tudo começou por uma peça. E a atmosfera do filme é teatral a todo o gás e a toda a trama. Vemos a casa, o espaço, o tempo, as pessoas sempre pelos olhos de Anthony num exercício empático que quase nos leva à loucura visual e auditiva.
Zeller descreve o seu filme “como uma espécie de suspense, convidando o público a construir a narrativa, como eu fiz no teatro. Eu queria que o público se sentisse próximo aos personagens.” Na adaptação de sua própria peça, ele aponta que “o cinema e o teatro nos lembram que somos parte de algo maior que nós mesmos. Apesar das qualidades labirínticas do original, há uma sensação de alegria na peça que eu queria manter no filme.”
Hopkins mereceu o OSCAR por este retrato, aquele que já lhe devia ter sido também entregue por DESPOJOS DO DIA, em 1993/1994 – perfeito, irrepreensível, de uma tocante vulnerabilidade, própria de quem não faz já de si próprio, saindo mesmo da sua pele (o que Frances MacDormand nunca faz em NOMADLAND e que, por isso, para mim, torna injusto este Oscar de 2021, muito mais justo nas mãos de Carey Mulligan).
“Faço isto há muito, sei alguns truques...”, ri-se o actor. Que adoptou o absurdo como lema. “O nascermos é a grande blague”.
*
É uma peça, um filme sobre a demência.
E, por ele, sou chamado para outra informação que recebi recentemente.
Um adolescente começa a ler um poema de Rudyard Kipling, rompendo o silêncio numa sala cheia de idosos: "se puder manter a calma/quando todos à tua volta já a perderam", quando um deles, doente de Alzheimer completa com um murmúrio: "você será um homem, meu filho!".
Para combater a perda de memória que afecta 800 mil pessoas no Reino Unido, instituições especializadas e hospitais começaram a recorrer à poesia, a mais absurda de todas as artes e a mais sublime de todas as verdades alternativas da vida.
A melodia e o ritmo de versos conhecidos conseguem bater na porta da memória, servem de detonador que activa a palavra e as lembranças.
Quando os pacientes "escutam uma palavra que conseguem lembrar de um poema, eles ganham o dia", contou Elaine Gibbs, directora do lar para idosos Hylands, que abriga 19 idosos em Stratford-upon-Avon, terra natal de William Shakespeare, região central da Inglaterra.
Com os cabelos grisalhos presos e vestido florido, Miriam Cowley ouve com atenção uma jovem que lê o poema "À Margarida", de William Wordsworth, um clássico nas escolas britânicas.
"Sabia o poema, mas tinha esquecido. Aprendi quando era menina", lembrou esta antiga professora, que sofre com a perda de memória recente. "Terei belos sonhos, sonhos tranquilizadores, de margaridas e árvores", comemorou.
E nós com ela.
Os poemas salvam-nos sempre.
Afinal, o Anthony não chegou a perder as suas folhas, a sua árvore permanece de pé mesmo que só veja ninfas em vez de frangos, ventos em vez de carros, luas em vez de luzes.
Foi uma noite forte.
Mas voltei com o Anthony comigo para casa.
E pensei, serenamente, no meu Joaquim e no meu Luís Manuel.
A alquimia do Cinema faz disto – o distante torna-se perto, a dor alheia é tida como nossa.
Até à redenção e ao genérico final…
E à próxima cantata de Einaudi (que também assina a partitura musical, a par de Nomadland)...


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