domingo, 25 de abril de 2021

Romanceiro

Romanceiro

*

Sou louco por letras.
Amanso a minha ira com os ditongos de Tolstoi.
Mastigo pós de brilhar com as histórias de Allan Poe.
Durmo ao som dos sonhos de Mia.
Rasgo a minha cólera com as fúrias de Agustina.
E embarco pelas ruas de Zafon, à hora certa dos relógios de Praga.
Baralho os tempos e as esquinas de Agatha.
Adiciono a espuma dos meus dias à turbulência de Faulkner
e vejo as sombras de Vian
no ombro esquivo de Yourcenar.
Quando Pessoa me tirou o sono
as letras molharam-se
por não saberem, afinal,
quem dos seus mil rostos falava assim.
As notas de rodapé embriagaram-me
com a água pé de Proust
e a amêndoa amarga de Cervantes,
o dos insanos moinhos em saga atroz.

As tramas matam os estilos.
Os poemas sabem a prosa.
As linhas cortam as frases
E o teu piano namora a minha voz.

Li.
E nunca mais fiquei só.

(PG), 2021



terça-feira, 20 de abril de 2021

Boa noite, tristeza

Dificilmente encontraria melhor motivo para quebrar o jejum de cinema em sala, após meses de confinamento forçado, do que a visualização do filme de Chloé Zhao, NOMADLAND, o mais que merecido Oscarizado filme do ano.
Para mim, ver Cinema é ir à sala e deixar a televisão em paz.
Mesmo que numa sala com apenas 5 ou 6 companheiros de aventura numa tarde de Coimbra.
Éramos seis na sala.
Os bastantes.
Os suficientes.
Deixei o meu sofá entregue aos ácaros e saí para, quase em tom de gala, assistir à projecção de um filme numa sala que me é querida, aqui em Coimbra.
Saudei a menina dos bilhetes, minha eterna cúmplice neste ritual quase sagrado, e entrei pelo breu dentro.
E ouvi Einaudi a assaltar a sala escura e ávida de gente.
Confesso que ia expectante e com a ideia pré-concebida de que este filme seria mais um documentário do que uma obra fílmica.
Errei.
Redondamente.
Não é só um road-movie este «Nomadland».
É um filme que SÓ PODE ser visto em grande écran.
E é mais do que isso.
Venderam-me como uma adaptação do livro de 2017 da escritora e jornalista Jessica Bruder e reflecte, em 2011, o impacto da crise financeira de 2008, retratando cidadãos norte-americanos desfavorecidos que viajam pelo Oeste do país e que vivem de empregos temporários.
Mas este não é um filme comum, tão atípico se veste.
Não é um filme de despedidas mas de eternos reencontros, entre gente nómada, que decide viver assim às fatias, sem poiso certo, considerando que a nossa casa, o nosso lar, reside onde está o nosso coração, sem argamassa ou tijolo.
Entre a Dakota do Sul, o Nebraska, o Arizona, Nevada e a Califórnia, o nosso mapa acende-se ao som do piano de Einaudi, penetrando em mundos tão desconhecidos e quase inóspitos.
Ali não há chão, há muitos chãos, há poeira e mil pós de estrelas que caem todos os dias nas nossas mãos.
Ali temos reais nómadas, a fazer de actores e actrizes, a fazer dos seus próprios papéis de vida como se fosse muito mais fácil assim.
É tão mais difícil fazer de nós, acreditem.
E eles e elas fazem de si próprios, encontrando trabalhos temporários e mal pagos só para subsistirem, verbalizando que lhes basta ter visto uma família de alces à beira rio ou um conjunto de pelicanos perdidos no Alaska, não esperando nada mais da vida.
Não têm planos.
Apenas a falta deles.
Vão-se reencontrando, depois de lutos e lutas insanas contra o tempo ou a falta dele, filhos a pais que não querem sedentarizar no lar perfeito e imobilizante, irmãs que se amam mas que se querem apartar.
E há Frances MacDormand, Fren, de sua graça no filme.
É superlativa neste registo, em contenção (pouco própria do seu feitio algo histriónico) e profundidade dramática (embora continue a apostar na vitória da minha musa Carey Mulligan, na noite de 25 de Abril).
O seu retrato em frente a um velho cinema de aldeia onde passa o filme «The Avengers» é antológico e contraditoriamente perfeito.
Tudo ali lhe lembra o marido recém-falecido, ele que nunca quis sair do mesmo local e sempre acreditou que à vida apenas bastava uma casinha branca e uma cerca de trigo loiro.
E Fren sai à procura de si.
Dos seus silêncios.
Das suas ausências.
Das suas lonjuras.
De uma América cem vezes perdida e mil vezes encontrada.
As paisagens da alma de Fren sabem ao gelo e à neve do Colorado e ao calor do Arkansas.
Já alguém quis ver no filme uma viagem rumo ao "pesadelo americano" vivenciado pelos invisíveis sem voz, vítimas dos múltiplos atropelos do capitalismo.
Não me interessam as razões para estas partidas.
O que me afectou na fita de Zao foi a imensa tristeza que me causou.
De uma tristeza que se quer sentir.
Com a maior das alegrias.
Como a cor das quedas de água, das andorinhas andarilhas, dos bisontes cegos de medo.
No fundo, a América, ou seja qual for a nossa casa, é muito mais a paisagem agreste das montanhas e dos vales, o choro da criança que anseia por ser mimada pelos pais, o mar que toca nas rochas como se se tratasse de um solo de violino, o Sol que amanhece pela fresta da barraca, do que a argamassa, o tijolo e a materialidade de que nos querem vestir.
No fundo, abraçar a crença de que pela estrada, por trás das montanhas, haverá sempre um vislumbre de novidade e futuro, muito futuro, mesmo que sem direito a pujança financeira e sucesso social.
Ouve-se por ali:
“One of the things I love most about this life is that there’s no final goodbye. I’ve met lot of people out here and we don’t ever say a final goodbye. We just say ‘I’ll see you down the road’. And I do… I see them again.”
Swankie, uma nómada real e erigida a actriz, diz a certa altura:
"I think I’ve had a pretty good life. How many people can say that?"
É verdade - vemo-nos por aí.
Para todos os que escolheram partir.
Para sempre ou só até ao próximo encontro terreno.
*
Assim vale a pena fazer Cinema.
Assim vale a pena viver para ver isto.
Uma tristeza que faz bem.
Como se, por hora e meia, a pandemia desaparecesse e, no seu lugar, só me aparecessem poeiras, águias rainhas e escarpas montanhosas por trás do Sol poente, marcas de um Deus Maior que a todos ama mesmo sem ser por todos amado.


sábado, 17 de abril de 2021

Bom dia, tristeza...

 


Bruscamente em Janeiro passado...

É a hora das cotovias.

E dos segr


edos.

Esta doença mata.

Mesmo.

Matou o meu colega de Curso António.

Matou uma minha vizinha de metros.

Matou mil e um desconhecidos que nunca pensaram que uma gripe pudesse ser assim letal.

Por causa dela andamos há uma no e pico a respirar por máscaras de pano por toda a face, andamos a afogar-nos em todos os tactos com soluções de álcool, andamos a descansar os apertos das mãos que já não se dão.

A madrugada é anunciada por números negros.

Chegou a peste aos solavancos nesta paleta de vendavais e de dias de sol como o de hoje onde, aparentemente, nada poderá ser doentio.

Sentem-se os toques das medusas, das andrómedas e dos morcegos e já não se cantam as avé-marias, porque as bocas estão presas por outras luvas e porque os mortos são levados à terra sem hinos ou elegias

Dizem que a final vai tudo ficar bem, que as andorinhas vão regressar de locais inauditos onde aprenderam a canção das primaveras, um nome mais próprio para os próximos verões malditos

Já não sei da minha rua, já só sei da janela do meu quarto onde os dias fogem às noites e as noites se molham de dia

Quando chegou a moléstia, nada deixaria adivinhar o que por aí vinha – a própria Saúde andava confusa com tanta comunicação contraditória e indecisa.

Mas chegou por um ano de dois vintes, onde nada foi igual ao passado e onde até se duvidava do futuro.

Por muito cuidados tidos, o vírus chegou a casa de muita gente.

Também à minha, num Janeiro doloroso.

Só me pegou a mim.

Ao de leve.

Quase como uma gripe frágil e escondida.

Mas temi por mim e pelos meus.

Desesperei enquanto não soube que a minha mãe, doente de risco, estava escalada para a vacina, protestei, lutei…

Cumpri as quarentenas, retemperei o fôlego de novos ânimos, espantei a angústia e a melancolia e fui salvo pelo Cinema e pela boa TV.

São sempre as Streisand e os Bogart que me salvam, não há nada a fazer.

Webinei às toneladas, desesperei com tantos microfones, ansiei por mil olhos presenciais e não só digitais e continuei sempre a trabalhar pela formação de magistrados em Portugal, tantas vezes à distância, mas sempre com o coração certo e a porta dele sempre aberta.

E temo ainda por tudo aquilo que por aí ainda virá.

Que mundo é este que entrego nas mãos dos meus amados 13 sobrinhos, ao sabor de uma partícula ínfima como o pó e que nos é capaz de matar?

Que esperar da impaciência de tanta gente que, confinada há meses, grita por uma réstia de ar livre, mesmo que sob a ameaça de uma coima?

Inconsciências vi muitas, sobretudo nas esplanadas da Praça da República nesta Coimbra.

Intolerâncias senti muitas, entre aqueles que teimam em teimar e em negar o óbvio – o bicho mata, sem apelo nem agravo, e não nos pergunta nem faz em nós o contraditório.

Ufano, como se cumprisse uma promessa, uma espécie de adeus, hoje levanto o alçapão do meu medo e grito bem alto, para lá das quarentenas:

- a falta que me fazem os meus!

 

*

Cuidem-se.

Não ouçam os loucos que se pensam sãos e que incitam as gentes ao impensável e ao insano.

Não temam o que a Ciência tem para nos oferecer.

Os riscos são tão mais elevados.

Que o diga o António.

Que o diga o Daniel.

Que o diga a Maria de Sousa.

Que o diga o meu Luís Sepúlveda.

Que o diga a Maria José Valério

Que o dia a Cecília de Guimarães.

Que o dia a Adelaide João.

Que o dia a cidadã x da minha rua de baixo.

Que o digam os 16 937 cidadãos portugueses que já morreram sem hinos, salmos ou dignas exéquias.

 

Sobrevivi a isto.

Está - quase – tudo na nossa mão.

 

Meu caro Daniel Sampaio, long life, e fico à espera de o ler…



 

 

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Diz-me a verdade a mentir



É oficial.
Só me mente quem eu quero.
Só me traz más novas quem eu escolho.
É assim que vou vogando pela casa grande da Alice, sem esperar tristeza que me vergue ou júbilo que me desassossegue.
Cá por perto, o branco coelho vigia as minhas horas e os meus famintos olhos e por aí, pelas esquinas dos caminhos, becos, ruelas, ruas e avenidas, as notícias tombam como papel pardo sob chuva oblíqua.
Leio as que quero.
Rasgo as que me magoam.
Não é sempre assim que se escolhem as epifanias?
Nem só acredito no que vejo.
Mas vejo tanto em que não queria acreditar.
E misturo os pincéis da realidade com o véu etéreo do poema em que me revejo e que insiste em não me deixar.
Dizem-me que as crianças são reis nesta peça de frémitos crescidos.
Contam-me que há magos que enlouqueceram no brilho da luz boreal que os cega.
Sussurram-me que vamos sair melhores e mais inteiros destes tempos de cólera.
Segredam-me que os bons ventos irão calar o peso das ogivas.
Gritam-me, com o mais doce dos olhares, que deixará de haver perigo nos afagos dos adultos.
*
É por isso que hoje, dizem, é o dia das mentiras.
As que se podem dizer.
Mesmo que com o melhor tom da nossa voz verdadeira.
As que cabem na palma da nossa vontade de largar tudo e voltar para a cidadela de Alice, ao encontro da flauta do louco Chapeleiro, esse que nunca deixou de viver dentro de mim.
Fujo da verdade?
Talvez.
Mas não é a verdade a mais pura das mentiras?