segunda-feira, 9 de junho de 2008

Beijo 6

O Silvata bem que lhe falara à Razão mas ele não estava ali.
Sabia de cor os procedimentos subversivos mas, naquela fim de tarde, só pensava em Ester.
Tinha de a ver.
Naquela noite. Antes de ela partir para o Porto.
Escrevinhou um bilhete, colocou-o no meio de uma Beauvoir e entregou-o ao Salema, amigo certo que os havia apresentado há um mês atrás.
O encontro seria na sombra nocturna da sua biblioteca, perto dos seus autores, perto de quem o fazia voar...
Pelas 10 da noite.
Hora conventual. Própria dos amantes que não se podem amar.
À hora marcada, não viu Ester. Temeu o pior.
Onde estaria ela? O Salema traira-o?
De repente, já passavam vinte e dois minutos da hora décima, uma rapariga resoluta aproximava-se do local combinado.
Não era Ester.
Mas?!...
A moça dirigiu-se a Alexandre, estendeu-lhe a mão e disse-lhe algumas palavras.
Que ele ouviu meio entrecortadas, tal a decepção.
- Ela não pode vir. Vocês não se podem ver mais. Eu sou Rute, uma prima da Ester. Pediu-me ela para lhe vir dar este recado. Acredito que esteja desiludido mas tem de a esquecer.
- Esquecê-la? Mas isso não faz sentido. Pensei que tinha havido uma química entre nós. Mas... você não percebe o que entre nós se passou.
- Percebo pois ela também sentiu o mesmo. Sabe, Alexandre, vivemos tempos obscuros e estranhos. O pai da Ester não admitiria nunca que ela rompesse com o Tomás, o seu namorado, e vivesse uma paixão consigo. Ela tem de casar com ele. O Tomás é filho de um burguês do Porto.
- Mas quem é esse pai?
- É alguém do regime, meu caro, ligado à polícia política. Não deveria nunca isto lhe dizer mas a Ester quis dar-lhe conta dos seus enredos passados, da sua história...
- Mas estamos em tempos que se podem renovar a todo o tempo. O que é isso perante aquilo que nós sentimos um pelo outro?
- Muito, Alexandre, muito. Resta-vos a lembrança desse beijo que se roubaram mutuamente. Adeus, Alexandre, e seja feliz...
E partiu como se nunca tivesse chegado.
Mensageira de más novas.
Alexandre olhou para a noite estrelada e sentiu-se desfalecer.
Que faria agora?
Bastar-lhe-ia a memória de um beijo?
Conseguiria bastar-se com os seus autores, com os seus prémios Nobel, com as novidades de todos as semanas, em termos literários, num Portugal caduco?
Sentiu uma lágrima furtiva invadir-lhe a face...
(...)
Repentinamente, acordou.
Estranho sonho este.
A seu lado, estava Ester, mais linda do que nunca.
No gira-disco, cantava um poeta andaluz.
E...

2 comentários:

R. disse...

Há dias assim... em que a vida nos entra pelos sonhos dentro e nos mostra o que já foi ou parece anunciar o que além veremos...
Há dias em que a vida não nos cabe nas horas despertas...
Há noites em que os dias se recompõem... em que os dias ganham sentido e a felicidade se constrói mais facilmente!
Há dias em que vamos para lá de nós e encontramos, na intermitência do sonho e do sono oco, o que afinal andamos a procurar aqui!
Há dias em que o amor já não nos ata a garganta e só faz jorrar dos olhos...
Há dias em que só o cheiro, o aperto do abraço e a saliva de um beijo, sonhados, nos fazem acreditar que sonhar acordado pode acontecer!
Há dias em que já não conseguimos sonhar... demasiado vazios de vontade... ou prenhes dela!
Há dias em que fica tudo por dizer...

César Paulo Salema disse...

Bem dito, R.
Resume a nossa história...
Bem-haja...